segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

O bar inexistente das figuras imortais

 No reino da não existência, as figuras imortais mais ilustres, que já tiveram uma vida no planeta Terra, conversam sobre futebol, celebridades, novelas das oito, guerras e etc. As notícias a respeito da via láctea passam em um telão, controlado pelo Grande B. (The big b), e todos, apreensivos e ansiosos, assistem às novidades do telão da via láctea.
Nesse telão, os rumos dos planetas Saturno, Vênus, Marte e Terra são televisionados como um grande reality show. As novidades mais esperadas são sempre vindas do planeta Terra. As figuras ilustres (Platão, Nietzsche, Karl Marx, Buda, Leila Diniz, Elis Regina, Janis Joplin, Hendrix e Jim) gargalham, observando os acontecimentos terrestres como uma grande piada. Os piadistas são Marx e Hegel, afinal, as figuras mais estranhas que já viveram na Terra, foram marxistas e hegelianos. Por isso, são os maiores comediantes, vivem sacaneando a turma do bar, eles fazem piadas em cima do povo terrestre e gargalham muito.
Mas, os mais depressivos do bar, curiosamente, sentados na mesma mesa de bar, dividindo copos de cerveja. Duas figuras que dividiram povos, consolidaram polêmicas e criaram suicidas. Hoje, depressivos do reino da não existência, escutando Reginaldo Rossi, Edith Piaf, Wando e Beethoven. Embriagados de excessos. Jamais, esquecidos por nenhum ser humano, nem mesmo entre os ateus e progressistas. Eles, mais tristes do que nunca, dividem a mesma mesa. Hitler e Jesus Cristo conversam a respeito da humanidade.
- Não sei por que ninguém deixa minha memória em paz? – disse Jesus – Porra! Eu morri, deixa eu morto. Mas não. Tem sempre um cristão que faz questão de colocar uma imagem minha crucificada na Páscoa. Tem gente que sempre faz questão de me ver sendo torturado. Não sei por que todos ficam me amolando?
- ah! Ao menos, você é cultuado com amor, Jesus, - disse Hitler, - eu não. As pessoas fazem questão de colocar a culpa tudo em cima de mim. Aaaah! Mataram um bando de judeus, a culpa foi de Hitler. Ah! O Nazismo, a culpa foi de Hitler!! Ah minha sogra não sai de casa, a culpa foi de Hitler! Ah, meu namorado é preto, a culpa foi de Hitler! Esses dias até a maçã, a maçã, que o negócio foi do Adão e Eva, colocaram eu no meio. Eu! Que não tinha nem nascido ainda. Porra!!
- porra, Hitler, tu também vacilou, né                                                   
- ah! Vacilei, né, Jesus, mas, não vacilei sozinho não. Me colocaram nesse espaço de vacilação. Agora, tá tudo mundo tirando corpo fora. Ninguém quer assumir ódio não. Precisa de alguém como eu pra poder autorizar o ódio?
- ah, eu tive tanta paciência, Hitler, tanta paciência pra ensinar fundamentos de amor, fundamentos de autonomia, de questionar a ordem vigente. Eu disse que ia trazer a paz, eu ia cumprir a promessa do meu pai. Mas ninguém entendeu nada, ninguém entendeu nada.
- você que é bobo, dizem até que você morreu por toda essa gente
- eu amei a humanidade mais do que tudo. Achei que todos poderiam plantar a sua própria semente. Porra! Mas, Hitler, veja isso, no dia que eu fui crucificado, todos os apóstolos tavam dormindo, tavam embriagados. Ninguém tinha entendido nada. Nada. Eu fiquei com dúvida, fui até o Jardim, fiz a oração pro meu pai e, depois, Judas me beijou na boca. Fui crucificado e morto. Nesse dia, ninguém se lembrou de mim. Ninguém, nem Pedro.
- na hora que tu precisou, as pessoas fizeram esse favor de te esquecer. Puta sacanagem, meu! – disse Hitler, - isso é tudo um bando de cagão
- Mano, no dia que fui levado pra morte, todo mundo me esqueceu. Agora que eu morri, todo mundo se lembra de mim. Ninguém respeita a minha morte. Fica falando merda sobre mim, bosta atrás de bosta, merda atrás de merda. Inventam fundamentos da minha vida pra justificar ódio, intolerâncias e preconceitos
- eu sei que o meu maior castigo, foi ser eterno – disse Hitler, -  a minha imagem na Terra é o símbolo puro da neurose e do ódio. Ninguém, Jesus, ninguém hoje assume que já acreditou nas minhas ideias; porque, enfim, queriam uma vida melhor do jeito que fosse, nem que fosse do pior jeito; porque também eram tiranos e pequenos Hitlers. Agora, eu nunca vou ser esquecido. Nunca vou ser esquecido. Jamais.
Jesus Cristo e Hitler beberam, estavam delirantes.
- eu vou ser eterno. As pessoas vão ser imbecis, porque não pensam por si mesmas – disse Jesus
- eu vou ser eterno. As pessoas são imbecis, porque nunca pensaram por si mesmas – disse Hitler
- o esquecimento é uma dádiva – eles disseram delirantes
Nelson Mandela, o forasteiro, sentou ao lado de Jesus e Hitler e disse:
- desculpa o atraso! Mas eles não deixam ninguém morrer em paz. O que estamos brindando?
Todas as figuras ilustres do bar inexistente gritaram:

- ao esquecimento! 

sábado, 22 de fevereiro de 2014

Tudo termina em Auschwitz

Eu acordei com a minha mente silenciada. Naturalmente, isso é muito incomum, sempre estive acompanhado com pensamentos esparsos, contraditórios e imprecisos, acomodando-se no mesmo lugar. Sou um biólogo, estudo genética, estava empenhado na construção de um novo DNA, que seria capaz de criar uma nova espécie de ser humano no planeta Terra. É uma maneira, completamente nova, de reconstruir a humanidade, tentando corrigir os erros já existentes da espécie humana. É algo que seria capaz de criar um novo mundo, fundamentado em saber, conhecimento, respeito, verdade e justiça. De algo modo ou de outro, seria uma nova esperança.
Caminhei, então, até a padaria da esquina. Encontrei dois amigos meus. João (estudante de pós-graduação de filosofia) e outro amigo chamado Diogo (funcionário público no setor administrativo da Escola Municipal Hélio Freitas), eles estavam fugindo de suas responsabilidades cotidianas. Eu também era um fugitivo. Com o mundo aos meus pés, eu estava cansado. Estava desacreditado na possibilidade de criar esse novo homem; houve vários fracassos com minha coleta de dados e também houve erros grotescos com minha aplicação de metodologia. As coisas não estavam boas... As coisas não estavam boas...
- Alexandre, ô grande! – (os braços de João estavam abertos, recebeu-me com alegria), - quanto tempo, meu grande amigo, como vai você? Tu lembra do Diogo?
- eu lembro sim – eu respondi – e aí, como vai os estudos com a música?
- eu abandonei a faculdade de música, - respondeu Diogo, - hoje, trabalho no setor administrativo na escola Hélio Freitas. Estudo música como hobby
- ainda toca bandolim? – eu perguntei
- abandonei o Bandolim. Estou tocando agora gaita e voltei pro violão – respondeu Diogo
- e você, meu querido Alexandre, - perguntou João, - ainda faz aquele trabalho com biologia, ainda tá pesquisando?
- ah, trabalhava na coleta de dados da descrição de um DNA de uma cabra. Agora, estou trabalhando num projeto meu – respondi.
- sério? Qual é a ideia?
- acho que é um sonho, meu amigo
- tem sonhos que vale a pena – disse Diogo
- nesse caso, é um fracasso de um desejo que eu tive quando era um jovem estudante, - (eu dei uma pausa. Encarei o Diogo), - ô Diogo, tu se lembra que você já sonhou com música?
- ah! Meu Deus, você ainda se lembra disso! Lembro sim.
- que música? – perguntou João
- eu tinha 14 anos. Eu sonhei com uma melodia de música. Menino, foi uma coisa sobrenatural, eu dormi e vi as notas musicais. No dia seguinte, eu criei aquela música minha que está no meu primeiro cd
- “nenhuma cor e todas as cores juntas”, é essa, Diogo? – perguntou João
- é essa mesma, eu pedi até pra sua namorada da época, a Aninha, lembra? Pedi pra ela criar uma letra pra canção
- lembro. Fez um puta sucesso a música
- hoje, eu sou um músico desconhecido. Fazer o quê, eu até que gosto um pouco, né! – disse Diogo – Nunca tive muito talento pra lidar com o público e com gravadoras. Estou protegido no silêncio dos anônimos
- então, - eu disse, - Diogo, eu tive um sonho parecido
- você sonhou com música? – disse João
- Não. Eu sonhei com uma rede de moléculas e células que criariam uma nova espécie humana. Acordei, de repente, com essa ideia. Passei o meu primeiro, segundo e terceiro anos de faculdade, pensando nas possibilidades de criar uma nova espécie humana.  E criando maneiras de resolver os erros existentes dela
- mas isso não é brincar de Deus? – perguntou João
- eu ia resolver os nossos problemas da arcada dentária, dos ossos, da possibilidade de guardar mais informações do cérebro, da intelectualização dos sentimentos e da imaginação religiosa. Eu ia criar um Hércules, um Cristo, um Superman. Um homem muito melhor que os mitos, um homem muito melhor que os homens
- mas isso é muito ambicioso – disse Diogo, - eu até que gosto das imperfeições dos homens
- eu adoraria ver as imperfeições dos homens serem corrigidas – disse João, - separar a imaginação criativa da ignorância das religiões. Aumentar a nossa força no mundo, não ter problemas de artrose, dentes mais fortes, respiração mais duradoura e uma racionalidade precisa e objetiva. Eu adoraria que a gente não tivesse doenças sexualmente transmissíveis e que a gente fosse, de fato, espécies inabaláveis e indestrutíveis
- João, a razão é uma rainha surda. A emoção é o excesso necessário. Já disse e repito, eu gosto das imperfeições da humanidade
- inclusive os genocídios, os femicídios e a escravidão?
- meu, tudo que é conversa termina do mesmo jeito
- que jeito?
- tudo termina em Auschwitz. Será que é impossível começar uma conversa ou diálogo banal sequer, sem colocar o Hitler no meio? – disse Diogo
- pera aí, gente – disse Diogo, - pera aí, gente, deixa eu terminar o meu raciocínio
- Hitler modificou a história do pensamento – disse João, - não é possível pensar o mundo hoje sem falar de Auschwitz
- não foi o Hitler
- claro que foi
- não foi o Hitler, mas a paixão em torno do Hitler
- gente, deixa eu terminar o meu raciocínio
Começaram as discussões calorosas em torno de Auschwitz. O funcionário público, meu amigo Diogo, tinha razão. Quando o assunto era Hitler, era pior que ver discussão de futebol no dia de libertadores. Era pior do que discussões entre são paulinos e corintianos.
- posso terminar o que tava falando? – eu disse
- pode sim – eles responderam
- eu tinha sonhado com uma nova espécie humana. Trabalhei cinco anos, tentei coletar dados, tentei criar metodologias. E, hoje, quando eu acordei e tomei ônibus. Eu fracassei novamente na coleta de dados. A metodologia não é boa. De novo, fracassei como cientista
- você não conseguiu? – os dois perguntaram
- Não consegui
- essa é a prova que a ciência é insuficiente depois de Auschwitz
- essa é a prova que só a arte é capaz de entender a falta de lógica do mundo
Eu respirei fundo e respondi antes que começassem as discussões calorosas.
- essa é a evidência de que o homem é ineficiente para criar um novo homem. O homem é o fracasso do próprio homem em todos os sentidos. Em todos os sentidos. Só nos resta tomar café, tomar cerveja, fumar cigarros e falar, falar, falar e falar sem parar a respeito do mundo, a respeito das coisas. Falar a respeito de nada. E, mesmo assim, fingir algum sucesso, porque eu vou ganhar dinheiro com meu fracasso, amanhã vou escrever um artigo e vou ganhar dinheiro pra isso
-isso é bom! – disse Diogo
- isso é bom? – disse João
- é a minha dignidade, meus caros, minha dignidade

Me despedi deles. Eu fui embora com a minha mente silenciada. 

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

O reencontro

Há meses, eu não retornava para cidade de São Paulo. O sentimento de rotina me tomou o rosto, a partir do momento, que eu pus os pés nas calçadas brutas dessa cidade. As pessoas apressadas caminhando entediadas, expressando um rosto insosso, como se tivessem vivido tudo que há no mundo. Depois da morte de Mariana, não via mais sentido continuar morando perto de lembranças.
Estava separado da minha mulher, dois ou três meses que eu não visitava minhas duas filhas. Como o meu pai também, não tinha talento para paternidade, entrei no primeiro beco que encontrei, sentei numa escada e vi os rostos entediados de todos na rua. Lembrei-me imediatamente de Mariana, ela atentava-se demais para a expressão nula e branca que as pessoas faziam quando caminhavam. Ela sempre dizia: “se fosse para imitar os rostos das pessoas quando estão no metrô, eu não ia saber fazer. Eles não têm expressão, eles olham e não querem ser olhados”. Eu ri de repente; ela dizia que a melhor maneira de esconder dos olhos atentos das pessoas era olhando-as de volta. Era esse o paradoxo: “você olha e se exibi gratuitamente para não ser visto. Só tem uma maneira de enfrentar o medo, enfrentando”. 
Meus olhos atentavam-se. De repente, percebendo cada detalhe dos movimentos, cada expressão vazia no olhar, os vestígios de humanidade perdendo-se no espaço, os imprevistos fugindo do controle. Ao observar tudo isso, eu entendi a beleza que eu não via numa cidade. Senti que tudo era um exuberante quadro de arte, uma espécie de balé, um estupendo e belo mau gosto, organizado em caos. No fundo, uma música imprecisa tocava no ar, era um som expressivo e denso.
Segui a música. Quando eu me aproximei, percebi que era um homem da minha idade que tocava uma flauta. Fiquei em silêncio, ouvindo uma música incomum tocada por uma pessoa desconhecida. Ele parou subitamente e me disse:
- nos conhecemos de algum lugar?
- não, nunca te vi na minha vida – eu respondi
- como é seu nome?
- Daniel, como é o seu?
- Joaquim
 Nós permanecemos calados, eu sentei ao lado dele. Não fiz mais perguntas, ele também não me fez mais perguntas. Eu fiquei tocado por aquela música estranha, não pude esconder as minhas lágrimas.
- qual é o nome dessa música?
- se chama “cinza”
- essa música tem história?
- tem sim, por que?
- porque, uma vez, uma amiga disse pra mim que todas as coisas no mundo têm memórias. É tudo uma questão de saber perguntar, é tudo uma questão de saber ouvir
Joaquim riu e respondeu:
- eu andava no bosque, estava perdido. Eu era o menino mais perdido no mundo. De repente, eu ouvi uma música, uma linda música. Eu era músico quando criança, sempre me expressei por sons. Quando eu segui essa música, me deparei com três ruas; nessa encruzilhada, tinha um velho cabeludo, muito bêbado, ele me olhou e eu, curioso, sentei para ouvir a música dele. O velho cabeludo disse que tinha feito pacto com diabo pra ser violeiro, tocava muito bem, nunca tinha visto alguém tocar tão bem na minha vida, quando eu perguntei de quem era aquela música que ele tava tocando. Ele tinha me dito: “essa música é de ninguém e o nome dela é cinza”.
- você nunca mais viu o velho?
- nunca mais. Mas, desde então, eu resolvi imitar aqueles sons. Eu larguei o violão, porque entrei em crise e decidi criar composições que eu chamo de “sentinelas cinzas”.  Eu toco pro ar, minhas canções são anônimas.

Eu fiquei silencioso, senti uma cumplicidade com esse flautista, parecia que a gente era grandes amigos. Não sei se ele me contou uma história verdadeira, mas também não me interessa. Algumas mentiras valem mais que algumas verdades falsas, eu senti alegria e dormi com menos culpa. Reencontrei algum conforto no meio da cidade. Não acredito que vivi infeliz a vida inteira, não acredito que tenho direito a felicidade eterna. Mas, ontem, conversando com esse rapaz flautista, tive a certeza que não estava certo e pude dormi com muitos desconforto engolindo meu cobertor. Nunca mais tive bons sonhos, mas tive uma recompensa. Tive alegria. 

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Romance interrompido

Estavam os dois distraídos, sentaram em cadeiras opostas. Mariana estava profunda e escreveu com os dois polegares um sms ao Joaquim dizendo: “vi aquele filme que você me indicou Fallen Angels, fiquei impressionada como você me conhece mesmo. O filme é excelente!”. Daniel estava perdido, era um homem banal e impreciso, mandou um sms para noiva Priscila: “eu te amo, mas preciso descansar. Depois eu passo na sua casa e juro que teremos um tempo pra nós dois”.
Ela olhou para frente, ele olhou para trás. Os dois olhares perdidos se cruzaram e, rapidamente, se identificaram. Mariana estremeceu, reconheceu o rosto de Daniel. Não usava mais cabelos longos, tinha pelos no rosto e parecia olhar as coisas com menos certeza que antes. Sentiu vontade de virar uma formiga e sair de fininho por entre as mesas, ela permaneceu intacta e os olhos atentos focaram na miragem de Daniel. Era apenas Daniel, uma memória ambulante dos seus primeiros desastres; um homem banal vendo uma mulher banal.
- como vai? – Daniel perguntou
- eu vou bem – Mariana respondeu
Ficaram séculos em silêncio.
- fiquei sabendo da morte do seu pai – ela disse
- pois é, - ele respondeu, - foi uma notícia estúpida no meio da tarde. Já recebeu uma notícia estúpida no meio da tarde?
- não, eu nunca recebi notícias estúpidas
- você tá ótima, tá linda! – ele elogiou confuso
- você também!
- você não quer sentar aqui do meu lado?
- eu acho que não vou ter tempo, vou encontrar uns amigos. Mas foi um prazer te rever, depois, a gente marca alguma coisa. A gente conversa sobre as coisas, a gente fala sobre tudo que nos aconteceu
- tem certeza?
- tenho sim, tchau
- até!
- até mais!
Mariana não tinha nenhum amigo para rever. Caminhou até o parque, sentou e teve uma lembrança, lembrou-se de um velho. Ele -- (o velho do banco) -- disse que ela, um dia, receberia uma notícia estúpida e debochou dela, quando tinha falado que queria ser escritora. Não lembrava o rosto do velho do banco, só conseguia relembrar o tom de voz rouco e as mãos debilitadas do homem. Era um velho sozinho, precisava conversar com qualquer um, ela era uma alma disposta a ouvir. Mariana ouviu o velho do banco.
Daniel reativou a memória da infância, lembrou-se de Mariana.  Eles não eram mais amigos. Daniel -- (o moço confuso) -- não conhecia mais os livros favoritos dela, não sabia mais os interesses que ela guardava como futuro. O que será que tinha acontecido com Mariana? Esse moço confuso despreocupou-se, estava autocentrado demais com suas angústias. Era uma ilha de emoções fortes. Caminhando até o parque, viu Mariana perplexa e sentou ao lado dela.
- você está aqui? – disse Daniel
- era pra eu ter fugido – respondeu Mariana
- não fugiu?
- Daniel, você para mim era um mito
- o meu pai pra mim era um monstro
- isso tem alguma relação?
- acho que sim. Acho que os monstros e os mitos são mais parecidos do que a gente imagina. Ou não. – Daniel riu.
- eu sempre achei de péssimo gosto os heróis
- você é uma garota estranha, Mari – Daniel sorriu
- sempre achei. Não ri de mim. Eu sempre achei de péssimo gosto os heróis, eu tenho uma teoria. Uma teoria que criei vendo Kill Bill
- pode contar
- o herói aristotélico é caracterizado por realizar algo que ofende os deuses. Ele realiza o que chamamos de Hybris, eu acho, pelo menos, eu lembro assim. Então, Daniel, o raciocínio é o seguinte
- você pretende chegar em algum lugar com isso?
- pretendo; me escuta. Beatriz Kido cumpre a sua vingança, não é mesmo? Mas todos os heróis precisam de consciência.  Toda a consciência dos heróis trágicos é firmada na virtude. O que caracteriza o surgimento da Hybris é um ato de ignorância ou um ato de arrogância diante dos deuses ou do seu próprio destino. Algo que passa da medida; um desequilíbrio.
- os heróis montam uma tradição? – disse Daniel
- montam sim.  Mas um herói, para Tarantino, é o equivalente a um assassino. Me recordo sempre de uma música do Tom Zé, uma pergunta que aparece: “com quantas mortes no peito se faz uma tradição?”. Um herói e um assassino é a mesma coia. Por isso que eu sempre falo pro Jô; Joaquim é o meu melhor amigo, ele é um louco, mas ele é meu amigo; eu sempre falo pra ele que se densa a vida também com lacunas
- bom, é de péssimo gosto mesmo um herói. Eles matam muito gente em nome de uma tradição
- os assassinos também, entende? No caso do filme Kill Bill, Kido mata o Bill. Os heróis precisam de alter ego, não é mesmo? O Peter Park é o alter ego do Homem Aranha.  O alter ego do Bruce é o Batman. O alter ego do Clark Kent é o Superman. O alter ego de Clarience, do filme True Romance do Tarantino, é o Elvis Presley. Bom, eu te pergunto. Quem é o alter ego da Kido do Kill Bill?
- eu não sei
- bom, ela é uma heroína, ela segue uma tradição e tem todas as características de uma heroína. Mas, falta um alter ego, não é mesmo?
- bom, não faço a mínima ideia  do alter ego dela
- o Bill
- o Bill?
- isso, o filme é uma saga lunática para matar Bill. Mas é o Bill que ensina como matar ele próprio. Ou seja, você entende, que a grande sacada é essa! O filme Kill Bill é um assassinato do alter ego do herói
- O que isso tem a ver comigo?
- eu sempre achei de péssimo gosto os heróis, mas como eu não sou uma pessoa coerente. Eu sempre criei heróis, sempre cultivei mitos e sempre desejei que eles falassem o que eu devia fazer. Você é o Daniel, não é um homem qualquer, eu sempre fui apaixonada por você
- por mim?
- sim. Você é um homem feio, mas sempre me atraiu. Mas você também me chutou, não é mesmo?
- chutei sim
- você ficou na minha cabeça, acho que você sempre vai ficar. Eu sempre coloquei você em um patamar maior que eu. E te vendo de novo, eu não sei o que fazer, acho que ainda coloco você como um herói
- você me acha um arrogante, não?
- eu falo demais
- e fala pra mim que ainda é apaixonada por mim
- não por você
- não por mim?
- não! Eu sou apaixonada pela lembrança que eu tinha da gente
- mas a gente não é mais a gente de antes, Má
Mariana olhou Daniel. Ambos estavam perdidos. Mariana percebeu que não poderia retomar nenhum vínculo com esse rapaz, sentiu inconformada e abraçou Daniel como se ele morresse. Despediu-se e foi para casa.
Passaram dez anos. Daniel iria casar com outra mulher e seria pai. Caminhou até a antiga casa que eram dos pais de Mariana, estava ansioso para reencontrá-la, quando perguntou:
- onde está Mariana?
- você não ficou sabendo, Daniel?
- o que?
- ela foi atropelada quando voltava do trabalho, ela sempre andou distraída com as coisas
- quando que foi isso?
- já faz dois meses

Daniel sentou-se no mesmo banco que reencontrou Mariana. Sentiu que algo tinha sido perdido para sempre. Casou duas semanas depois, nunca mais procurou vestígios concretos de sua velha desconhecida. Mariana era uma presença minguante, bagunçava seus medos e lhe deu uma noção de efemeridade das coisas. Daniel sentiu medo de perder as coisas preciosas, sentiu vontade de ligar para todos os seus amigos, ficou perplexo. Ele se sentiu como um homem banal e teve medo da solidão. Esse moço confuso nunca se recuperou, quando voltou para casa, foi assaltado andando na rua e dormiu numa cama como um homem banal. Acordou como um homem banal, casou-se como um homem banal, teve filhos como homem banal, divorciou-se como um homem banal.  E anônimo, entristeceu como uma figura impossível.