segunda-feira, 28 de outubro de 2013

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À Nathália Ferraz

“O anjo da morte, que em certas lendas se chama Samael e do qual se conta que o próprio Moisés teve de o afrontar, é a linguagem. O anjo anuncia-nos a morte – e que outra coisa faz a linguagem? - , mas é precisamente esse anúncio que torna a morte tão difícil para nós. Desde tempos imemoriais, desde que tem história, a humanidade luta com o anjo para lhe arrancar o segredo que ele se limita a anunciar. Mas das suas mãos pueris apenas se pode arrancar aquele anúncio que, de resto, ele nos viera fazer. O anjo não tem culpa disso, e só quem compreende a inocência da linguagem entende o verdadeiro sentido desse anúncio e pode, eventualmente, aprender a morrer.”
(Agamben. Ideia da morte)

Foi na segunda-feira. As duas jovens escritoras sentaram e conversaram sobre os casos de amor. Era quase meia-noite, elas estavam sobre a grama e enxergaram a lua, nenhuma das duas sabiam sobre os segredos da existência, mas elas não eram proibidas de pensar e realizar conversas banais sobre esse assunto.
- não acredito nisso, ná – disse Lóri
- não acredita em grandes destinos e em grandes amores. Não acredita? Não acredita que uma pessoa pode reverberar a sua vida de cabeça pra baixo e fazer do seu coração, um grande trapezista
- eu até acredito! Só não acredito que uma pessoa só muda a minha vida. Eu acredito que muitas pessoas mudam minha vida. Sei lá. Bom, e também, Ná, você acredita nisso?
- acredito em amor, Lóri, - disse Ná – acredito demais. Acredito em coisas bonitas; sabe, quero uma pessoa. Não é uma loucura?
- querer uma pessoa?
- pois é. Não se bastar sozinha
- sei lá. Sei lá. Algumas ausências são mais presentes. Algumas presenças são miúdas; quase não é percebida. Mas, você devia ter se acostumado com a solidão, porque, você escreve tão bem
- se a escrita tivesse junto anticorpos pra saudades (rindo). Mas você disse bem. Como será possível?
- o quê?
- algumas pessoas nos afetam mais que outras
- sei lá. Deve ser a força de alguns encontros
As duas riram.
- Lóri, eu namorei um rapaz que só falava mentiras. O cara já tinha feito de tudo, mas era lorota, sabe, segundo ele, até puto ele já foi. É por isso que eu reconheço mentira de longe, gente que não escuta você, joga experiência na sua cara, não deixa você terminar a frase, sabe?
- sei! Desconsidera a experiência do outro
- isso!Isso! Bom, mas ele foi o primeiro cara que eu transei. E foi até bom, mas ele era um idiota
- (risos)
- você ri. Ele chegava pra mim, sem fôlego, parece que tinha corrido umas trezentas maratonas. Na frente da igreja, me beijava e me dizia: essas velha que não paga serviço. Eu ficava com aquela cara de interrogação. Ele falava: eu sou garoto de programa, acabei de chupar uma velha e ela não me pagou o serviço
- Nossa! Mas era tudo lorota?
- Tudo, Lóri, mas aprendi a diferençar, né, o que é mentira do que é verdade. Aqui na faculdade tem muitas pessoas assim
- (risos)
- e foi com ele que aprendi tudo sobre sexo
- Eu tenho uma amiga que fala que a minha vida amorosa é muito badalada. E tenho outro amigo que diz o contrário. Ele fala pra mim assim: “a sua vida sexual é muito badalada, a sua vida amorosa anda bem abatida”.  Não sirvo pra namoros não
- ah tadinha! Vou colocar você no colo (risos)
- mas, sobre sexo, eu aprendi tudo com um professor meu. Ele foi o meu professor de violão, acabei toda encantadinha, tinha dezessete anos e ele me pegou pela mão
- que que aconteceu?
-o de sempre. Devios, curvas e outros amores. Ele casou, a gente ainda se encontrava e era maravilhoso. Claro que era! O que é proibido sempre aumenta o fogo
- tipo assim, Tristão e Isolda
- tipo isso, quando eram dois adúlteros. Amor gostoso só funciona na bagunça; ele é meio pervertido e caga regras. Esse foi o problema, cagou regras demais, bagunçou a minha vida
-(risos) quantas posições estranhas do Kama Sutra emocional você fez, Lóri?
-Só não acho que foi todas, porque, você sabe, você sabe. Eu interrompi o amor e, às vezes, dói
- Amor interrompido é mania de escritor. A gente se acostuma com a tempestade, Lóri
- acho que é pra tirar o tédio, a gente inventa aventuras
- mas a gente podia fazer diferente hoje, falar de um assunto mais leve, sabe
- como assim?
- a gente podia fugir das etiquetas amorosas. E sair do lugar comum dos escritores jovens que fazem grandes e longos devaneios sobre fossas e pessoas que saíram pela porta dos fundos e deixou a gente aqui pra contar as histórias
- o que a gente podia conversar?
- Não sei, fala de você, Lóri, fala sobre os seus escritos, fala de alguma coisa boa, tava gostando de você falando. Eu falo demais
-ah! Sei lá
- você está bem?
- estou sim, hoje sim. Você tá bem?
- não sei, eu descobri um negócio. Menina, eu tava lá conversando com uma menina e descobri, Lóri, eu descobri que eu não posso, sabe, não tenho vida pra queimar
- como assim?
- eu descobri que eu vou morrer
- (risos)
- é sério! Morreu o meu avô e a moça que me viu crescer que morava na frente da minha casa. Fiquei apavorada, não conseguia dormir. Menina, eu colocava a mão no peito pra sentir se o meu coração batia. Falei pra minha mãe, ela fez essa mesma reação
- (risos) você quer que eu conte uma coisa que eu me envergonho também?
- por favor!
- eu quando achei que estava grávida, porque transei sem camisinha, fiz o meu primeiro teste de gravidez errado. Sabe o que eu fiz pra abortar o bebê. Eu plantava bananeira no meu quarto pro sangue subir na minha cabeça
- (risos) você não sentiu  remorso não? Eu dei soquinhos na minha barriga pro bebê sair, socava e não tinha nada lá dentro
- menina, fiz isso também, plantava bananeira, dava soquinhos na barriga e, depois, chorava e chorava
As duas riram.
- eu descobri que eu vou morrer, Lóri, eu preciso fazer alguma coisa na minha vida
- tá em conflito né. Eu sei lá, tenho vontade de morrer jovem, às vezes, tenho preguiça de viver. Eu acordo, tomo café da manhã, escovo dentes, é muito raro, sabe. É muito raro acontecer um encontro
- sei lá, eu prefiro ficar cansada de viver do que morrer. Lóri, o meu Deus é de amor, não faz sentido, entendeu. Nada faz sentido, a experiência que eu tive com ele foi só de amor, a morte pra mim é um anúncio esquisito. Ela não faz sentido, entende, nada faz sentido sabe
- deixa eu ver (coloca a mão no peito). Seu coração ainda está batendo, agora, nesse momento, você está viva
As duas riram.
- (Ná joga o cigarro longe) O que eu faço?
- eu não sei. Eu não tenho medo da minha morte, às vezes, eu desejo ela. Tenho mais medo da morte que toca as pessoas que eu amo. Isso, eu morro de medo. É igual aquele caso, sabe, do nosso amigo que se matou com vinte anos. Menina, aquilo me machucou fundo. O menino tinha a minha idade
- é sim. Não posso ficar falando essas coisas pra todo mundo. Posso falar isso pra você, porque você tem uns parafusos a menos
- (risos)
- você tem, né, Lóri – Ná riu – eu também tenho, tenho uns cinco parafusos a menos
 Continuaram com olhos na lua, não encontraram respostas. Ná respirou fundo, não entendendo nada. Lóri coçou a cabeça, não entendendo nada. As duas riram. O riso, nesse momento, era a única maneira que as duas tinham de fugir das etiquetas existenciais, ambas não entendiam o que falavam, por isso, se comunicavam assim. Essa experiência ultrapassava qualquer modo de entendimento e, nesse momento, a falta de compreensão do mundo formava um acontecimento que só traduzia na sensação de vazio. Elas estavam alegres, porque não entendiam.


sábado, 26 de outubro de 2013

O fotógrafo feiticeiro

Ele era um jovem fotógrafo, trabalhava em festas de casamento para conseguir algum dinheiro fora do orçamento normal. Marcos tinha apenas vinte e dois anos de idade, quando conheceu aquela pessoa que mudaria a sua vida. Ela se chamava Anita.
Marcos fotografou o rosto dessa mulher no casamento. Anita era a noiva. Ele enquadrou a figura comum do casal feliz e fez um retrato banal que representa uma felicidade matrimonial. Entretanto, ele enxergou os olhos enturvados e finos de Anita, sentiu, na superfície da pele, um leve tremor. Nenhuma fotografia que ele produziu nesse casamento, traduziu essa sensação breve e encantadora que Marcos sentiu no minuto que cruzou os seus olhos com os olhos da noiva. Ele sentiu um tremor curto que agitou os pelos do braço.
Duas semanas depois. Marcos terminou o álbum de fotografias, fez um telefonema e informou à Anita que o trabalho já estava pronto. Anita, então, estava diante da porta, esperando o chamado de Marcos. Alguns demorados três minutos que pareceram séculos na cabeça de Anita, ela esperou e esperou até que, finalmente, foi atendida pelo fotógrafo anônimo.
- você me ligou, me disse que o álbum já estava pronto. Eu vim buscar – disse Anita
- Ele está – Marcos fez uma pausa longa. Anita sentiu um leve desconforto.
- E, então, - disse Anita, - não vai buscar?
- Aaah sim! Eu vou
Marcos foi procurar o álbum. Anita ficou sozinha na sala. Enquanto ele procurava as fotografias do casamento, Anita pensava: “eu podia ter namorado esse carinha aí; bonitinho ele é”. Marcos também pensava: “que mulher linda! Que mulher jeitosinha! Que gostosa! Que gostosa”.
- está aqui! – disse Marcos
- aah! Obrigada – disse Anita, esperou o turno do silêncio e reiterou para diminuir o desconforto – você tirou fotos bonitas
- é! É sim! É o meu trabalho!
Anita foi embora rapidamente. Três dias seguintes, ela voltou e falou as mesmas coisas. Os dois só discutiram banalidades, o clima ainda continuava tenso e cheio de subentendidos.
-aah! Você tirou fotos bonitas!
- é o meu trabalho!
Anita foi embora. Marcos ficou suspenso. A sala era bagunçada, tinha uma mesa no canto esquerdo que estava preenchida com trabalhos antigos, fotos velhas e papéis em branco. O tapete branco, que recebia os clientes, ficava entre a mesa e uma planta falsa, era o único espaço vazio naquele ambiente. Marcos, às vezes, dormia lá com suas fotografias favoritas. Dessa vez, ele foi embora e foi dormir na sua casa.
Anita demorou quatro anos para reencontrar Marcos. Ele olhava fotografias, estava obcecado com as imagens de Anita que fotografou no casamento. Ela, em silêncio, estava suspensa e imóvel diante da porta entreaberta. Marcos percebeu a presença feminina, espionando seus gestos, enxergou-a e foi recebê-la.
Eles, novamente, se repetiram. Conversaram banalidades:
- aah! Você tirou fotos bonitas!
- é o meu trabalho!
Anita foi embora. Passaram dois anos. Marcos ficou ainda mais apaixonado pela imagem da noiva de olhos pretos e criou um feitiço. Toda a vez que cantasse uma valsa, a imagem de Anita lhe daria um beijo na boca. Assim, começou uma nova rotina.
Na terça-feira, a valsa foi cantada.
- eu te amo
- eu te amo
Um beijo longo. Na quarta-feira, a valsa foi cantada.
- eu te amo
- eu te amo
Um beijo longo. Na sexta-feira, a valsa foi cantada.
- eu te amo
- eu te amo
No sábado, no domingo, na quinta-feira, todos os dias da semana, essa cena se repetia frequentemente. Marcos ficava mais apaixonado, encantado e alegre com essa mulher. Quando trabalhava, não parecia mais o mesmo homem, o amor alegrava a sua rotina. A imagem de Anita, toda à noite, saía do retrato e dava longos beijos na boca, ele esquecia o mundo. Sempre adormecia. Na quarta-feira, ele adormeceu sereno e relaxado em cima do retrato da bela noiva.
Anita abandonou o seu primeiro marido, tinha viajado para Argentina, Espanha, Paraguai e Califórnia, tinha encontrado outros amores, tinha perdido contato com muitos amigos no Brasil, tinha se transformado em outra pessoa. No entanto, ela não tinha se esquecido de Marcos. Ela foi procurar esse homem. Estava lá. Anita estava concreta, outra vez, parada diante da porta vendo um homem adormecido.
Ela estava pronta, estava disposta para fazer a sua vida acontecer. Anita iria revelar o seu divórcio com o primeiro marido, as suas mudanças internas e externas e, finalmente, aquele amor calado que escondeu por muitos anos. Essa mulher estava pronta para concretizar as palavras ensaiadas por anos, que foram sufocadas nos últimos encontros com Marcos para não demonstrar nenhuma emoção ou atração, afinal era uma mulher casada.
Ele acordou, olhou a fotografia com doçura e, depois, viu o rosto concreto de Anita. Mudou radicalmente a expressão do rosto. Marcos era um homem perplexo.
- você?
- oi – Anita disse – desculpa, eu te acordei?
- É você mesmo. – (pausa) – Mas, você está com outro rosto
- já passou um tempinho depois que eu me separei
- quando você se separou?
- um ano
- faz um pouco mais de cinco anos que não nos vemos. Você cortou o cabelo? Está com outros olhos
- que olhos?
- Não sei. Seus olhos estão mais atentos
- e os seus, mais cansados
Ele sorriu devagar.
- acho que que é porque eu acordei agora - (uma fotografia estava grudada na boca, ele se livrou dela e colocou sobre a mesa) – veja só! Dormi no trabalho de novo
- estava dormindo com minha foto?
Marcos não disse nada. Anita pegou a fotografia. Ambos não sabiam o que fazer com os olhos.
- você sentiu minha falta?
- De você? Não sei. Eu senti saudades dessa daqui
- troca as noites que você anda passando com essas fotografias com uma noite comigo, uma mulher de verdade?
Ele não respondeu. As coisas reagiram sozinhas. Aconteceu um longo beijo. Ela passou à noite com esse fotógrafo. Marcos viveu uma noite com essa mulher, sentiu a concretude daquele corpo e, por um momento, questionou a realidade daquela situação. O fotógrafo desejou a solidão, havia algo nos seus feitiços que protegia contra esses sentimentos. Quando ele estava com a imagem da noiva, não tinha medo de ficar sozinho, acostumara-se com a vida solitária e com o beijo de uma mulher falsa. Estranhava o beijo de uma mulher verdadeira.
- o que você sente?
- eu? – disse Marcos – eu? Eeeu, eu, acho que, acho que é misturado
- é coisa boa?
- também é
- é coisa ruim?
- é sim. Eu sinto medo, meu amor, medo
O casal ficou imóvel. Não continuaram com a conversa, fizeram amor de novo no chão.
***
- você imaginou?
- não tinha passado na minha cabeça
- eu preciso te dizer uma coisa. Eu me separei do meu marido, porque não suportei viver uma relação mentirosa. Eu pensei várias vezes dizer que queria você, mas, sei lá, tinha medo de ser rejeitada. Deixei várias vezes o momento passar, então, pra te esquecer, eu viajei, conheci duas ou três pessoas diferentes
- você teve outros namorados?
- tive mais uns dois
- hã! – ele engoliu seco – você gostou?
- gostei – Anita fugiu dos olhares de Marcos -, mas não era isso. Eu queria estar aqui. Agora, eu sei, vai parecer meio ridículo, eu queria estar aqui, queria estar com você
Ele ficou sem jeito com seus olhos.
- eu não sei, -- ele respirou fundo --, também tive uma outra mulher na minha vida
Ela diminuiu o fôlego, fixou o olhar no rosto de Marcos.
- ela também foi importante na minha vida quando você partiu. Foi uma mulher que me fez ser uma pessoa diferente. Agora, eu não sei o que fazer
- você vai deixar ela?
- não sei
- vai me deixar?
- não sei
- o que vai fazer?
- Anita, eu me apaixonei por sua imagem no casamento. Fiquei obcecado por sua espessura do rosto, por sua pele e por seus olhos. Você tinha olhos inocentes e até toscos. Agora não! Você tem olhos atentos. Mas, eu me apaixonei por sua imagem de noiva, eu fiquei encantado por ela, eu dormia com o seu retrato todos os dias
Anita engoliu o ar seco.
- Anita, não sei se estou sendo claro, se você está me entendendo. Eu fiquei muito apaixonado por você no seu casamento. O seu noivo não percebia a raridade de figura que você era e que você não é mais
- mas, eu não entendo. Marcos, as pessoas mudam, você também mudou. Não entendo onde você quer chegar com isso?
- eu fiz um feitiço. Quando você sumiu, eu fiz um feitiço pra te esquecer
- que feitiço você fez?
Ele mostrou a fotografia que dormia todo dia e cantou uma valsa. A imagem da noiva apareceu e dançou a valsa. Anita observou aquela aparição, estava paralisada. A ilusão da mulher parecia mais real que ela própria, uma mulher concreta, presente e impregnada de tempo, memória e emoções. A noiva riu e disse:
- eu te amo
Marcos não respondeu. A noiva insistiu.
- eu te amo
Anita também disse um pouco apavorada, quase esbaforida e sem fôlego, sem certeza, se era o momento certo para repetir aquelas palavras que aquela mulher falsa repetira tão facilmente para Marcos:
- eu te amo
Marcos ficou em dúvida, sentiu vontade de beijar as duas mulheres, sentiu vontade de retribuir o amor para as duas figuras, sentiu desejo por ambas. Ele não sabia como reagir, não sabia o que fazer com o corpo. Anita reagiu:
- você não vai falar nada
A noiva repetiu:
- eu te amo
Marcos coçou a cabeça. Anita disse:
- você vai ficar aí. Que realidade você quer?
A noiva repetiu:
- eu te amo
Marcos disse:
- eu quero as duas
Anita ficou sem saber o que fazer com o corpo. Ela, sem pensar uma frase de efeito, agiu no impulso, vestiu uma camisola, saiu pela rua na madrugada, caiu em duas latas de lixo. Marcos ficou desolado, pensou em correr atrás dela, mas foi impedido pelo beijo boca que recebeu da mulher falsa. Quando o fotógrafo desceu as escadas, a chuva molhando as esquinas, ele viu um corpo estendido no chão, era um corpo de mulher. Anita tinha sido atropelada.
No dia seguinte, Marcos rasgou as fotografias do álbum de casamento de Anita. Adormeceu. Quando ele acordou, estava diante da porta um casal do último casamento que ele tinha trabalhado.
- viemos buscar o álbum de fotografias.  – disse o marido, - Eu sou o Daniel, eu que falei com você pelo telefone
- ah sim – respondeu Marcos, - mas você disse que ia trazer a sua esposa junto
- ah claro! Ela está vindo – a esposa entra pela porta da frente. Ela estava deslumbrante. Marcos sente um estremecimento nos braços. Daniel diz – olha lá! Essa daqui é minha esposa. Esse é o fotógrafo, ele se chama Marcos, amor. Ela se chama Anita
- prazer! – disse Anita
- prazer!  - disse Marcos
- as suas fotografias são bonitas
- ah! Sim! Sim! É o meu trabalho

Conversaram banalidades. O casal foi embora. Marcos ficou suspenso e solitário diante da porta, enquanto tragava o seu último cigarro. 

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

A dúvida de Thaís (os restos da Bruxa de Macabeth)

Há algumas roupas nas cadeiras, restos de figurino dos outros espetáculos. Marciana limpa a maquiagem. Ela usa um figurino pela metade, o lado esquerdo desvestido do tronco mostra o seu sutiã preto. A atriz se veste para o retorno do cotidiano comum de todos os mortais. Enquanto, Marciana se veste com adereços da banal Marciana, ela conversa com Antônia sobre os próximos capítulos da novela das nove “A Passageira”.
Thaís abre a porta, fica intimidada com as duas mulheres adultas; por isso, ela fica suspensa diante das duas. Marciana repara a sua distração, observa, através do espelho, o reflexo da menina tímida que espera o momento certo para entrar.
- Você não quer entrar, Thaís? – disse Marciana
A menina, hesitante, entra no espaço, que repousa vestígios de figurinos e adereços, sem querer, ela pisa em cima de uma luva vermelha. Thaís joga a luva e cai no colo de Antônia que coloca o adereço na arara de roupas. A menina de olhos pretos inquietantes senta no chão e observa o final da conversa das duas mulheres adultas; ela, então, se inferioriza diante dos adultos. A voz quase murcha e, por um momento, esquece o motivo de ter procurado a tia Marciana. As duas mulheres adultas riem alto, Marciana sorri, fica suspensa diante do espelho, o rosto dela já está quase limpo de maquiagem. Muda a expressão do sorriso do rosto. E, finalmente, a atriz repara a mudez repentina de Thaís.
Os dois olhinhos da menina correm fugitivos para direita e para esquerda. Thaís, apesar da infância, não tinha olhar doce e inocente. A inquietação esbugalhava a visão dessa menina. Marciana, com a sutileza maliciosa que aprendera com a maturidade, permaneceu em silêncio, esperando o tempo da coragem de Thaís. A menina, finalmente, tomou coragem e perguntou:
- Tia Marciana, posso te fazer uma pergunta
- parece que a pergunta é bem séria, não é mesmo?
- é bem séria, Tia! – Thaís fez uma breve pausa – Tia, você me fez uma promessa, lembra? Que nunca ia mentir pra mim e sempre ia me explicar as coisas direitinho
-Fiz sim – Marciana revirou o corpo e olhava a figura inquietante de Thaís – qualquer coisa que você pedir, eu vou falar uma verdade. É o trato!
- sim – disse Thaís – É o trato!
- que que foi, Tá?
Thaís deu uma volta no espaço, fugindo dos olhares das duas adultas. Ela sentiu, ao mesmo tempo, arrependimento e coragem.
Tia – sem olhar para Tia Marciana -, Você já me explicou tanta coisa. Mas eu preciso saber – Thaís ficou sem saber o que ela fazia com as suas mãos - ; eu preciso saber. Tia, como é possível o encontro?
Antônia não entendeu a pergunta. Thaís sentiu que essa mulher ia soltar uma risada. A menina, então, sentiu vontade de xingá-la com todos os nomes feios do mundo, porém, ela não tinha percebido que a expressão do rosto da tia Marciana havia mudado. A atriz soltou um meio sorriso, as duas mãos repousaram suavemente sobre os joelhos.
- como é possível o encontro? – Marciana fez uma pausa. Ela entendeu que era uma espécie de pergunta grandiosa, que guarda uma experiência, várias dúvidas e um sentimento de solidão. Marciana entendeu que a menina tinha vivido alguma coisa importante, entendeu a pergunta silenciosa. Como resposta, tia Marciana doou parte da sua vida para a sobrinha que estava com a vida pela metade.
- como é possível o encontro? Lembra que a gente conversou sobre brincadeiras e sobre como é fundamental exercitar a imaginação
- você falou que a imaginação é um músculo, que a gente vai fortalecendo com o tempo
- minha querida, não sei como responder essa pergunta
- mas tia! Eu preciso que você me responda. Como é possível o encontro?
Antônia ficou em silêncio, ela se transformava plateia, observava o acontecimento. Algo que ela não entendia, que ultrapassava as suas experiências de mundo. Ela entendeu que o silêncio era importante naquele acontecimento.
- Não sei – disse Marciana – A gente passa pela vida, falamos português, andamos na rua e, depois, o dia termina e dormimos. Entendeu? (pausa) Não entendeu, né?! É assim, Tá, por causa de alguma coisa que eu não entendo. Eu tenho essa voz, eu tenho esse corpo, eu moro em São Paulo. É assim, Tá, cada um tem a história que tem
- Tia, você já viveu o que estou passando?
- Não! Eu vivi o que eu passei. Você, Tá, vive o que está passando, quando acontecer alguma coisa. Sabe? Alguma coisa que vai fazer você seguir um caminho diferente do meu. Você vai olhar a vida de um jeito diferente de mim
- Então, Tia, você não pode ajudar? – pausa. A voz saiu quase tímida – o encontro não é possível, Tia?
- Não é impressionante! A gente mora em São Paulo. A gente se encontra com bilhões de pessoas. Pensa, Tá, quantos milhares de amigos a gente pode fazer somente um dia
- mas a gente não faz, Tia
- exatamente! Por que?
- porque todos vão para outros caminhos. As pessoas seguem a vida que tem que seguir. Mas, tia Marciana, você não entende? – Thaís quase chorava – Como a gente encontra alguém? Como, de repente, em um dia qualquer, sem esperar, sem contar as horas, a gente dá de cara com aquela pessoa que fez a gente sorrir de graça. Ou o contrário. A gente dá de cara com aquela pessoa que fez a gente chorar, porque ela foi uma idiota ou porque eu fui uma idiota, ou porque os dois foram idiotas. Você entende, Tia? Tia, não sei como é possível, não sei nem se estou me explicando direito. Ah! Lembra quando eu tinha sete anos e você me explicou o significado da palavra integridade? Você não me explicou com o dicionário. Você me disse que o Homem passa vida querendo ser íntegro. A gente, tia, se divide demais, se perdemos demais, por isso, passamos a vida correndo atrás dos nossos pedaços. A gente passa a vida correndo atrás dessa experiência. Essa experiência que possibilita unir as nossas vidas, os nossos pedaços. Não sei. Não sei. Tia Marciana, eu não estou me explicando direito. Hoje, tia Marciana, quando acordei, entendi alguma coisa e tive coragem de fazer essa pergunta pra você. Tia Marciana, é possível o encontro?
Marciana riu devagar. Ela mudou a expressão do rosto, não sabia o que fazer com suas mãos. Marciana ficou séria.
- Acho engraçado a vida, Tá! Uma vez, quando eu estava muito perdida, me apaixonei por um rapazinho. Vivemos um momento bem marcante, tivemos um encontro. Toda a vez que sinto isso, algo parecido com a sensação de estar no meio do palco, sabe, no palco no meio do espetáculo. No coração das coisas. Algo parecido com a alegria de estar no meio do palco sem saber as horas e a minha idade. Hoje, antes de você entrar, quando eu limpava a minha cara e me despedia da bruxa do Macabeth. Me despedia de novo. Estava me fazendo essa pergunta: e, agora, como vou voltar pro mundo? Como vou suportar viver o mundo depois do encontro com essa bruxa na minha vida?
- e o que você fez?
- Não fiz nada. Não é engraçado! Eu moro em São Paulo, conheço milhares de pessoas e, todo dia, conheço mais pessoas. Quando eu acordo, eu desejo um encontro com aquele rapazinho, que também mora em São Paulo. Eu sei que ele mora na Liberdade. Eu trabalho lá, ele mora lá e sabe o que acontece?
- não, me conta
- Nunca nos encontramos. É engraçado a gente passar a vida querendo vivenciar alguns encontros. E, aí, a gente vivencia um desencontro. A gente vive milhares de desencontros importantes aqui em São Paulo. Não é engraçado viver, Tá!
- é meio triste, tia Marciana
- triste? Viver não é triste. A vida é uma bola surrealista que a gente nunca vai entender. Eu sei. Eu sei. Você tem dúvidas, minha pequena, mas é assim mesmo. É assim mesmo. Não quero que você se torne um adulto conformado, quero que você se inquiete ainda mais. Quero que você engorde a sua inquietação. E quero que você aprenda a rir com os seus desencontros
- por quê, Tia?
- porque a gente vivencia mais eles. A gente tem que aprender, na marra mesmo, a reconhecer os encontros. Você já consegue entender que um encontro pode mudar a nossa vida de uma maneira muito poderosa. Por isso, a gente tem que aprender. Mas, minha pequena, são os desencontros que dão corpo pras nossas vidas e faz a gente ser um monte coisas ao mesmo tempo
Antônia fez uma expressão do rosto diferente de todas as outras que ela fizera na vida. Ela não falou nada, avisou somente que já estava tarde. Thaís beijou Marciana. A atriz estava vestida para o mundo. A bruxa de Macabeth estava desmanchada sobre as cadeiras ao lado de outros vestígios de espetáculos. Antônia apagou as luzes. O espaço estava escuro com alguns restos dessa conversa que nunca mais iria se repetir.


quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Todas as tentativas de visitar você

- Foi no domingo. Tentei te ligar, você não estava em casa. Aí, você me mandou uma mensagem assim: “Joana, não dá pra você passar aqui em casa hoje, porque fiz uma cirurgia. Estou um pouco debilitada”. Tentei te ligar na quarta-feira, mandei outra mensagem, perguntando: “você está livre esse domingo?”. Você me respondeu: “não estou em São Paulo, Joana, essa semana estarei trabalhando em Santa Catarina”.
Depois de três anos, quando contemplei vinte e cinco anos, desisti de reencontrar você. Arranjei um namoradinho, não era aquela paixão avassaladora, era somente outra distração pra não cair no tédio e não pensar em suicídio. Estava com muitas leituras atrasadas na Universidade, mas tinha decidido que assumiria abertamente o meu diálogo com a Clarice. De alguma maneira, minha amiga, estava tomando as minhas decisões com a literatura. Não eram as certas, não eram as erradas. Eram as minhas, tinha a ver com a vida que tinha construído até agora. Eram aquelas escolhas que eu podia ter, né
- no domingo, você tentou me visitar de novo, não é?
- você não estava em casa. Aí, eu sonhei com você. Na verdade, eu sonhei com uma casa vazia, o espaço era branco. Eu estava muda. Lembrei dos versos de Ana C.: “tenho uma vida branca a minha espera:     ”.
- não entendi, Joana, como você sonhou comigo se você, na verdade, sonhou com um espaço vazio?
- é isso, S. L.. Eu sonhei com isso. Eu sonhei com o vazio. Não sei; eu posso falar uma loucura. Mas, eu tenho uma mística com o vazio e os desencontros.
- como é isso?
- o desencontro é um encontro que não ocorreu. É um limiar entre o possível e o imaginável. É como aquele corpo que antecede a entrega, suspira o ar do outro e o ato não acontece. É o passo que antecede o outro e volta pra trás. E te obriga, sabe, te obriga a fazer outro rumo, te coloca em outro lugar
- o que isso tem a ver com o vazio?
- a vida não tem forma, não é. Tenho a impressão que os encontros são muito raros, minha amiga, por isso, deixa marcas. Mas o que é persistente é isso, é um passo no abismo. É um passo no vácuo. O desencontro é isso, te obriga caminhar pelo vácuo, te obriga criar novas situações. Mas. Minha amiga, esse espaço vazio, esse limiar do que não é concreto até a sua materialização, isso tudo, minha amiga, eu tenho um medo.
- medo de quê?
- é o espaço do impossível. Onde a imaginação preenche todas as lacunas.

***
- e aí, o que aconteceu depois, Joana, conta tudo que aconteceu antes do nosso reencontro?
- não sei como te contar; lembra de uma história? Quando eu era criança e você me contava a história do bailarino feiticeiro?
- nossa! Você ainda se lembra dessa história. Lembro sim
- Tenho a impressão
(barulho incompreensível)
- Tenho a impre, (barulho incompreensível), tenho a impre (barulho). O que é isso, S. L..?
Alguma coisa mexeu debaixo das almofadas do sofá. Elas ficaram suspensas. Em um salto de tempo, um maravilhoso gato preto pulou em cima da mesa. O animal cheirou os cabelos negros de Joana, como se a cumprimentasse com votos de boas vindas.
- Joana, esse é o Prometeu, ele é bem barulhento e gosta de chamar atenção
- Deve ser um gato leonino!
As duas riram. O gato preto fechou os olhos rapidamente, deu um salto como um fugitivo. Pulou em cima do pé direito de Joana, ela percebeu o movimento do animal e empurrou as pernas na direção contrária para fugir do ataque repentino de um felino. O vento assoprou as vestes de Joana, ela escondeu os pés. O gato foi embora, caminhando elegantemente até o seu pote d’água.
- então, continue a história, Joana
- então, tenho a impressão de ter conhecido esse bailarino feiticeiro que você falou pra mim
S. L. mudou a expressão do rosto, fez uma expressão pálida, parecia assustada.
- isso não é possível, Joana! Isso é fábula! É fantasia!
- então, deixa eu contar. Estava assistindo uma peça de teatro com Marcelo, aquele namoradinho que te falei. De repente, vi uma figura branca subindo as escadas. Falei pro Marcelo: “esse é o bailarino”. Ele me perguntou: “que bailarino?”. Eu respondi: “não sei o nome dele, não conheço ele pessoalmente, não somos amigos. Mas, eu sempre imaginei ele. Na verdade, eu conheço ele das histórias que eu ouvia dele. Não tinha certeza se ele existia, mas eu era tão íntima daquela figura da minha imaginação que ele acabou virando um dos meus melhores amigos”
- e aí?
- aí, eu fui atrás do bailarino. Aí que está. Fui atrás dele, mas não conseguia me aproximar dele. Começou com as escadas, elas eram imensas, nunca conseguia chegar no topo. A partir do momento que comecei a subir as escadas, o Marcelo ficava para trás. Aí, eu nem chegava perto do bailarino, mas também não voltava pro chão. Subia as escadas sem parar
- Meu Deus! E a peça?
- Não tinha relógios. Não conseguia voltar no tempo. Tinha que subir as escadas, não tinha escolha, entende. Vislumbrava o bailarino de longe e, a cada passo, eu me afastava de Marcelo. Fiquei apavorada, estava preocupada, já estava atrasada pra peça. Estava desesperada, porque as horas passavam e já estava ficando tarde pra pegar o metrô. Também, eu já estava sem fôlego de tanto correr.
- e o bailarino?
- você ainda consegue se lembrar da história do bailarino?
- algumas coisas
- era um bailarino muito bonito, tinha saído de sua cidade, porque queria acabar com a maldição que jogaram em cima dele. Quando ele crescesse e ficasse adulto, o bailarino mataria o pai e se deitaria com a mãe.
- Aaaah sim! Aí, ele foi buscar respostas, ninguém o ajudou. Ele foi parar em outra cidade que ele acabou ajudando
- isso! Ele conseguiu solucionar o enigma da esfinge e, com isso, as pestes da cidade foram embora. Mas o bailarino não queria ser rei, então, não casou com a mulher prometida dessa cidade
- e a cidade lhe pregou uma maldição. Uma maldição terrível!
- todos os cidadãos arrancaram os seus pés e despersonalizaram ele e foi assim que se transformou em um feiticeiro. Foi um presente para aguentar o castigo de viver sem os seus pés e sem a solidez do seu corpo. O bailarino caiu em profunda angústia. Passou a buscar os seus pés, andando em cidade a cidade, ficando cada dia mais triste e desesperançado. E desde então, todos os lugares que ele passa, o bailarino perde uma parte do seu corpo. Ele consegue curar a si próprio, por conta dos seus feitiços; mas, essa magia é falha, toda a vez que ele cura uma fragmentação do corpo, ele se deforma. Ele só resolveria a angústia dele, quando, um dia, ele encontrasse os seus pés. A busca dele é por esta parte do corpo que não encontra em lugar nenhum
- o que aconteceu, Joana, por que você ficou tão triste esses últimos dias que você não conseguiu me encontrar? Nada disso faz sentido.
- eu encontrei esse bailarino depois de tantos desencontros. S. F., eu não sei como falar isso pra você, talvez você ache que eu estou te sacaneando. Mas, eu quase chorei de emoção e acho que, de certa maneira, fiquei ainda mais assim
- assim como?
- menos satisfeita e plena com a minha condição. Vou terminar de contar a história.
- pode terminar!
- o bailarino olhou para mim, S. F.. Olhou pra mim com tanta tristeza e eu não pude recusar minha vida. Então, me dei pra ele. Eu dei de presente o meu pé direito, estava cansada, não conseguia alcançar o topo da escada. Olhei os olhos dele e arranquei minha perna direita. Fiquei desequilibrada e cai diretamente no chão. A minha visão ficou embaçada; mas eu pude ver, minha amiga, pude ver; o bailarino abriu um sorriso. Desde então, tenho a impressão que eu fiquei manca por dentro. Por isso, eu queria te visitar, só que nenhuma tentativa deu certo.

S.L.F. enxergou os pés de Joana, faltava o pé direito. Elas trocaram olhares. 

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

A morte do vovô Chiquibim

No mundo, o dedo aponta um caminho. Ele, um velhinho sem dente, enxerga uma garotinha bem bonita, com um pequeno nascimento de seios amostra e usando vestido, vindo em sua direção. Essa menina fica calada por meia hora. Ambos suspendem o tempo, ninguém comenta de onde vêm e para aonde vão.
- você é filha do seu João?
- não senhor, sou filha dele não
- você é filha do seu Francisco?
- não senhor, não conheço ele não
O velho chamado Chiquibim ainda tenta descobrir se a mocinha sem nome e título é filha de alguém da vizinhança. Essa moça aponta o dedo e mostra um caminho.
- eu vim dali
Chiquibim direciona o olhar para o caminho que o dedo anular da menina apontou. Ele enxerga duas árvores, três pedras sobre o chão e um caminho vazio por onde nunca caminhou. Era um espaço que nunca tropeçou, nunca teve curiosidade para conhecer. O velhinho sentiu a ignorância abater o seu queixo, o vento assobiou seus ouvidos, voltou-se à mocinha misteriosa. Ela não estava mais lá, tinha desaparecido. Chiquibim ficou imóvel, olhando o espaço vazio do banco que essa menina estava sentada. Ficou suspenso no ar, quase perdeu o fôlego de susto.
Dois dias depois, a neta de Chiquibim chamada Nila foi visitá-lo. Nila era uma menina com muita vitalidade e energia, uma garotinha bagunceira e desengonçada, por conta da alta estatura, como dizia a vizinhança. Ela era filha da caçula da família que morreu no parto, Nila era filha da filha mais nova e mais rebelde. Os fofoqueiros da vizinhança sempre diziam: “pois é, seu Chiquibim, filha de peixe peixinho é, essa daí quando crescer também vai te dá um trabalho”.
- vô!Vô! – beijando o rosto do Chiquibim, quase não deixava o velho falar – Tenho uma história pra contar, Vó, tu deixa que eu conte.
- é uma história da escola
- não, Vô
- aconteceu alguma coisa com seu pai?
- não
- então, é história de quê?
- é uma história de bruxa. Vô, eu conheci uma menina que é filha de bruxas, ela estuda comigo na escola e a mãe dela sempre vive viajando no tempo pra tentar mudar as coisas no futuro próximo. Essa menina também gosta de apontar caminho que os outros não conhecem, ela mistura as coisas. Quando ela aparece, a gente fica confuso e imóvel, não sabe se é sonho ou se é realidade.
Chiquibim ficou com os olhos aguados e esguios, respirava anseio.
- essa menina é sua amiga, Nila?
- minha melhor amiga, Vô, um dia eu posso trazer ela pra você conhecer?
- Claro, claro, claro – ele disse com pressa e fugiu para cozinha. Por longas horas, olhou o caminho que essa menina apontou. Ficou imóvel e fixo no ar.

- você está confuso – disse a bruxinha com doçura
- como você apareceu?
- xiu! – calou a boca do velho com o dedo anular – não importa. Vim para te contar uma história.
- a minha neta!
- não está aqui, quero dizer, não está no tempo da gente. Ela está no outro tempo. Preciso te contar uma história, você está disposto ouvir?
Chiquibim concordou com a cabeça.
- minha mãe morreu no século XIV, não foi de peste de negra. Foi por causa da inquisição. Ela era uma mulher muito bonita, ensinava as moças mais pobres as artes de cuidar do seu próprio corpo e a mim deixou o seu livro de receitas das mulheres da família
- não entendo o que isso tem a ver comigo
- se deixar que eu termine a história, vai entender
- é claro, os médicos, os padres e os homens não gostaram muito da ideia de mulher do povo ensinando outras mulheres do povo. Dizia que isso era feitiço. A inquisição queimou a minha mãe na fogueira.
A menina apontou o caminho.
- foi ali! Vê? Nessa árvore, minha mãe me contou um segredo. Antes de ter me dado, um livro de receitas da família.
- que segredo foi esse?
- o assassino da família
- você
A água quente que estava no forno, caiu na mão direita de Chiquibim. Nila entrou assustada e viu que a sua amiguinha do colégio estava sentadinha no chão, olhando sem curiosidade para o teto. Ela percebeu uma tensão no ar. A pequena bruxa disse:
- Nila, não fique assim com essa cara de quiabo mal preparado, você percebeu que eu era uma garota diferente das outras e você precisa aprender o que é morte
- por que eu preciso aprender isso? – disse Nila com tom choroso
- porque vai ver o seu vôzinho morrer
Foi devagar. A água fervente deveria ter uma substância ácida. Chiquibim soltava um som de gemido, as peles desgarravam-se, ficando em carne viva. Nila sentiu um odor verborrágico, ficou imóvel, não podia agir. A bruxinha sorriu, esperando o homem sumir de suas vistas.
- Nila, não peço perdão, não sou menina, sou uma mulher – a pequena bruxa, de repente, se transformou em uma mulher linda e sensual diante dos olhos de Nila. – você me olha assim, desse jeito, não sabe que sente raiva, eu também me senti assim, vi minha mãe morrer assim. Você tem todo direito de sentir raiva de novo, tem direito de querer matar alguém. Eu também tenho direito de pedir perdão a você – um olhar curto e meigo surgiu dos olhos da bruxa. Ela sumiu.
Nila ficou imóvel, os braços apertavam os ombros. Não tinha consciência se era tristeza, não tinha consciência se era ódio pelo estranho assassinato de Chiquibim. Ela se encostava ao canto da cozinha e fechou os olhos de tanto chorar em cima dos joelhos.
- filha! Filha! Filha!
- hã? – com lágrimas nos olhos
- venha querida, estava te procurando em todos os cantos da casa. Que que foi? Está triste?
- um pouco
- minha filha, venha cá – por longos minutos, o pai abraçou a menina -, eu te entendo, mas a gente precisa se despedir do vô Chiquibim
- ele morreu, papai?
- sim, minha querida, morreu, ele já estava velhinho, morreu de uma doença que degenera aos pouquinhos as lembranças das pessoas mais velhas. Lembra que eu falei pra você. Ele foi aos pouquinhos esquecendo de todo mundo, de esquecer e de cansaço, morreu.
Por longas horas, Nila abraçou o pai.
- ele não morreu por causa de nenhuma bruxa não?
- que isso, menina, estava tendo esse mesmo pesadelo de novo?
- papai, sabe o que é curioso? Eu tive muito medo disso, mas não tive medo da bruxa que levou o meu pai, só não gostei de ver meu vô Chiquibim sumindo
- ora, você não teve medo da bruxa? Por que? Não era uma bruxa má?
- era uma moça bonita, papai, estava fazendo o que tinha prometido pra mãe dela. Ela falou pra mim que eu podia me vingar dela quando eu ficar grande
O pai sorriu devagar, abriu os dentes como se mascasse chicletes. Nila caminhou até o caixão do vô Chiquibim. O vô usava o terno azul, estava muito bonito para um homem morto. Ela, então, sentou no fundo, encolhidinha, viu de longe a pequena bruxa. Ambas trocaram olhares, sorriram como se entendessem.
Nila viu uma formiga caminhando com sua folhinha na cabeça. Ela, com um rosto sem expressão, pisou na formiga, pegou a folhinha e assoprou ao vento. Sorriu maliciosamente. A pequena bruxa sumiu, quando Nila olhou não estava mais lá. No velório do vô Chiquibim, chovia uma chuvinha amarga, breve, os olhos piscavam com cada gota que caía. Ela olhou a morte da formiga. Nila entendeu. Havia cometido o primeiro assassinato banal, aquele era o misterioso momento que deixava de ser ignorante, suspirava uma inocência cruel. Sorriu.
Ela e o pai voltaram para casa. A rotina voltou pesadamente para vida dos dois. Nila sorriu.