Eu
nunca consegui descrever aquela figura. Em 1972, aquilo estava diante dos meus
olhos, esperando algumas perguntas minhas e eu, em prontidão, talvez, querendo
respostas. Estávamos sentados um diante do outro. Eu, com aquela sensação,
estranha, de não saber o que perguntar, mesmo sentindo uma petulância
irascível; afinal, um repórter que se preza precisa, antes de tudo, possuir um
sentimento de ousadia. Todas as perguntas são idiotas. O repórter é a
profissão mais idiota que essa sociedade inventou. Sendo idiota, me assumindo
assim, eis a minha maior coragem, afinal o repórter é um escritor medíocre que não
conseguiu escrever o grande romance. Morreu antes de escrever as primeiras
linhas, terminou com perguntas bobas, esperando respostas que não teve coragem
de responder por si mesmo.
-
o que você pensa do mundo? – perguntei com uma frieza falsa
Houve
um tempo de respiração. A sala estava vazia. Então, depois de cinco minutos silenciosos, houve o tempo de fala daquela
figura:
-
é uma piada de Deus, onde estão andando pessoas medíocres e, facilmente,
imitáveis, com sonhos tolos e noções ridículas da natureza. O mundo é um parque
de diversões, eu rio demais com as imbecilidades que as pessoas diz. Pô cara, a
gente tem três caminhos: 1º) entrar na guerra; 2º) entrar na floresta proibida;
3º) um mergulho no labirinto.
-
como são esses três caminhos?
-
todos são caminhos sem volta. Todos terminam na morte física. Os homens possuem
isso, morrem. Assim, sofrem menos – (ele olhou para baixo, os olhos tristes pareciam fundos), - os imortais sofrem mais, eles conhecem as leis e as
regras da natureza, joga o jogo e, às vezes, ultrapassam a natureza.
O
mundo aparente é a guerra, onde existem guerreiros cansados, guerreiros
preguiçosos e bons guerreiros. Os bons sempre morrem antes. Os preguiçosos têm
um monte de truque de cartas, normalmente, vivem nos botecos e jogam truco ao
invés de lutar contra os imperadores. Eles se divertem na guerra, são pessoas
divertidas. Os medíocres estão cansados, hoje, estão sem saber de nada, não encontram sentido no mundo; eles precisam de explicações, precisam de líderes e decoram livros.
A
floresta proibida é também divertida, existem belos e esquisitos animais. Alguns adolescentes
entram nela porque se apaixonam pelas fadas e os elfos. Conheço poucos humanos
que se transformaram em fadas e elfos, são pessoas difíceis e com temperamentos
complicados. Aah! A beleza! Eu adoro a beleza, ela é perigosa e sedutora, eu
gosto de trepar com fadas e elfos, esses desgraçados sempre fazem que eu me
apaixone por eles. Os duendes é que são criaturas terríveis e escrotas, roubam
e são feios, sujos e fedidos; mas, até que conseguem serem bons amigos, é sempre
bom ter um amigo assim. Os duendes são baixinhos, entram em todos os lugares,
entende, são criaturinhas feinhas, mas são simpáticas e verdadeiras.
O
labirinto é lugar de preservação de sentimentos profundos. Não conheço pessoas
que moram lá. Só sei que que quem entraram lá, não voltaram, são criaturas que
não são criaturas, são profundos e a tristeza e a angústia lá têm outro nome,
entende. Os adolescentes que entra lá, não volta e ganha outra aparência, sonha
outros sonhos, conhecem outro amor. Normalmente,
os medíocres permanecem na guerra, mas tem gente que consegue se divertir
jogando truco e enchendo a cara.
-
o que é a memória?
-
Isso é uma pergunta bonita. Existem poetas que fazem da memória o fruto de suas
artes, consequentemente, o fruto de sua pobreza. O mundo de guerra é mundo de
conservação de miséria e pobreza. A memória é feita em diálogos entre pessoas que querem inventar o presente. O passado é uma narrativa inventada.
Somos todos meio que poetas da nossa vida, na verdade, não são todos, são
aqueles que conseguem e querem ser idiotas a vida inteira. O inferno são dos
idiotas.
-
os poetas são importantes?
-
pra guerra não, na guerra os poetas morrem fácil fácil. Não são todos que sabem
segurar uma arma e matar. Apesar que a poesia tem um pouco de morte. Um bom
poeta é um assassino em potencial. O poeta sempre flerta com a morte, mas essa
sedução é idiota, porque o poeta sempre perde. Sempre! Enfim, eu gosto dos
poetas, são criaturas únicas. Pena! Que são poucos e que também vão embora
rápido. Vão embora, porque os poetas, na verdade, são criaturas fracassadas,
queriam namorar elfos e fadas, não conseguiu; queriam conhecer o labirinto e
inventam poesias pra tentar representar esse tal sonho, mas nunca chegaram nem
perto disso; eles são criaturas que não conseguem e, aí, correm atrás de
mecenas pra bancar, né, os seus poemas. É pra isto que eu existo, banco os
poetas, eles fazem pacto comigo.
-
o que você é?
Ele
olhou para mim, riu com uma malícia sedutora, estava tão bonito. Ri de volta.
-
repórteres são burros, a burrice é a melhor inocência. Afinal, só vocês pode
fazer essas perguntas estúpidas e tão bobas. Vocês, repórteres burros, são
parecidos com os atores, os melhores são absolutamente toscos de tão bons, são
tão humildes que até eu fico emocionado. – (ele soltou um som de riso, gostoso, e
eu ri também) – O que eu sou, querido? Eu sou o mecenas dos poetas, o cafetão
das putas, o cara que sempre está nos botecos, o verdadeiro rebelde, eu sou
apaixonado pela beleza, eu amo homens imbecis, porque sempre pagam a conta do
boteco, eu sou o cara que fode todo mundo, porque todos imitam porcamente a
natureza, ninguém se usa dela. Eu sou o ser inimitável, porque ultrapasso a
natureza. Eu sou o diabo.
-
eu estou fazendo uma entrevista com o Diabo
-
constatação óbvia que só os repórteres consegue fazer! Meu querido, pergunta
pra mim o que todos querem perguntar pra Deus.
Eu
fiquei com medo, passei os dois minutos mais longos da minha vida. Afinal,
estava diante da figura mais popular do mundo. A figura que se rebelou contra
Deus. Poderia fazer a pergunta que toda a humanidade gostaria de fazer, então,
olhei fundo dos olhos e, com uma petulância tímida, fiz a pergunta:
-
como é o Deus?
O
Diabo gargalhou. Riu de mim como se eu fosse um idiota, afinal, só um completo
idiota teria a coragem de fazer uma pergunta tão estúpida. Ele me respondeu:
-
Deus não imita ninguém, nem quer ser imitado. Ele está no silêncio, mas se você
for buscar o silêncio para encontrar ele, você não vai achar. Ele está nas
árvores, mas se você procurar as árvores para encontrar ele, não vai encontrar. Ele
está nos botecos, mas se você se perder para encontrar ele, você não vai encontrar.
Ele está em muitos lugares e não está em nenhum desses lugares. Ele não é uma
figura, ele não é parecido com ninguém, como eu, não sou parecido com ninguém.
Sou o que os outros fizeram de mim. Nós dois precisamos um do outro para
existir, eu adoro beber com ele. Ele é uma figura engraçada, ótimo humorista,
quase um palhaço e é um bailarino engraçadíssimo. Ele se parece com uma
criança. Aliás, ele adora crianças.
-
como é que você quer terminar essa entrevista?
-
vamos fazer um pacto, meu querido, eu quero fazer um pacto com a burrice dos jornalistas.
Afinal, os poetas daqui alguns anos vão estar fora de moda. Se você topar, meu
querido, eu te levo até o labirinto.
Naquele
dia, em 1972, eu fiz um pacto com o diabo. Ele prometeu que iria apresentar o
labirinto para mim. Não conheci o labirinto. Depois, perguntei a ele porque tinha feito
essa promessa para mim. O Diabo me respondeu: “eu menti pra você”. Eu fiquei muito nervoso,
acabei me tornando poeta. Mas, depois de quarenta anos, a poesia ficou fora de
moda. Morri pobre com dois livros de poesia publicados e uma entrevista com o
diabo que me deixou famoso por uns tempos. Namorei duas fadas e fiquei
apaixonado, perdidamente, por um elfo. Tive um filho que morreu jovem na
guerra. Eu virei poeta.
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