À todas as mulheres do mundo
Caminhamos pelas ruas, comemos
cachorro quente com coca-cola. Somos gordas ou magras, temos um sorriso banguela,
um rosto desarmônico e não somos mulheres sedutoras. Nunca nos fizeram uma bossa
nova, nunca nos dedicaram uma poesia, não ganhamos nenhum concurso de beleza.
Somos as rejeitadas. No máximo, satisfazemos sexualmente os maridos, noivos e
namorados, quando as boas e belas mulheres não estão olhando. Somos as
migalhas, o pequeno vestígio do bolo de chocolate.
Caminhamos pelas ruas, somos seres invisíveis.
Mas, ainda assim, somos notadas. No consultório do ginecologista, as nossas
vaginas são, impessoalmente, acariciadas sem intimidade ou carinho. Sentimos,
então, o peso de não sermos belas, quando não podemos ter intimidade com as
divas ou com os bons partidos. Os homens nos tornam piadas, somos motivos de
riso em bares e em banheiros masculinos.
Você não sabe de mim, faço parte
desse grupo de mulheres. Você não vai me chamar de diva, não vai ver o meu
rosto na tela do cinema. Eu estava na esquina mais próxima do apartamento, onde
você mora. Deitada sobre o asfalto, meu corpo seminu foi esfaqueado duas vezes,
depois que um homem robusto, muito bonito, me estuprou.
Caminhamos pelas ruas, não percebemos
que, ao nosso lado, existem pessoas. Eu era uma pessoa, mesmo sendo uma mulher
feia. Fui estuprada, porque eu era uma mulher, andando no meio da noite,
sozinha, não usando roupas decentes. Eu achava que ninguém iria perceber o meu
corpo, mas o estuprador percebeu. Não posso nem dizer que me senti humilhada
novamente, porque você vai dizer: “você devia ficar feliz! Afinal, nunca vi uma
mulher bonita reclamar que foi estuprada. É só mulher feia”.
Você vai dizer isso, mas nunca me
notou, porque eu era invisível, não era uma mulher que você convidaria para
jantar. Agora, não existo mais. Não sou mais uma presença desconfortável à sala
de estar. Mas, você vai repetir: “você devia ficar feliz! Afinal, um homem
apareceu na sua vida e te notou”. Não foi um homem que me notou, foi um
estuprador que me matou.
Caminhamos, invisíveis, pelas ruas.
Somos mortas no asfalto todos os dias. Não pense que é uma realidade morna, não
pense que é menos por que foi com uma mulher feia. Você não me conhece, não me
trate como um animal. Os meus sofrimentos são verdadeiros, eu fui humilhada,
porque eu existia. Ninguém vai recordar que, um dia, uma mulher feia morreu no
asfalto esfaqueada por um homem bonito; depois do estupro, ela agonizou e bufou
sangue. Mesmo assim, você vai dizer: “você
devia ficar feliz! Nunca vi mulher bonita dizer que foi estuprada”. Eu não
posso mais ficar feliz ou triste, porque eu não existo mais. Não sou que
escrevo essas confissões, não posso mais ter sentimentos, não posso discursar
por mim. Mataram-me, porque eu fui uma mulher andando sobre o asfalto. O
estuprador não sabia que eu era uma mulher feia, ele me estuprou, porque eu era
uma mulher no lugar errado e no momento errado. Mataram-me e, agora, não sou
mais uma mulher concreta, eu não existo mais. Do dia para noite, me tornei uma
mulher morta sobre o asfalto. Você não notou de novo, porque eu era uma mulher feia.
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