Uma justificativa para crítica
Não é o
enfoque desse blog escrever crítica literária, teatral e/ou de cinema. Mesmo gostando muito dessas produções
artísticas, eu acredito que para tecer críticas é preciso saber fazer, dominar
alguns conhecimentos que requer tempo de aprofundamento, reflexão e leitura.
Ainda não saberia tecer uma crítica com profundidade. Por isso, não é o enfoque
do blog; mas, eu acredito e vejo a importância da crítica ao lado dos leitores
e consumidores de produtos da arte. A crítica é fundamental, não para ensinar o
público o que deve ser lido, visto ou amado. A importância dela é de, em
primeiro lugar, divulgação, e, em segundo lugar, reconhecimento histórico da
produção artística. Principalmente, a função da crítica é de educação política
do leitor apaixonado.
Nesse caso,
vou abrir uma exceção. Em 2009, 2012 e 2013, Enrique Diaz fez parceria com um
dramaturgo canadense chamado Daniel Macivor que rendeu as montagens: In on It, A primeira vista e Cine
Monstro. As peças In on it e A primeira vista estrearam em 2012 no
teatro Alfredo Mesquita, que ficou fechado para reformas. A exceção é,
justamente, porque eu tenho carinho pelo teatro Alfredo Mesquita e fiquei feliz
com o retorno da Drica Moraes depois de enfrentar o câncer. Em 2012, eu assisti
à peça In on it, mas não vi o espetáculo de estreia, em São Paulo, A primeira vista, estreia também do
Alfredo Mesquita, depois de ficar fechado para reformas.
No dia 23 de
março de 2014, assisti ao espetáculo A
primeira Vista no Itaú Cultural, última apresentação aqui em São Paulo e
última da temporada. Não vi a estreia, mas vi o último dia, foi uma
oportunidade de ver com meus próprios olhos uma atriz que tenho muito carinho, a
oportunidade de ver outra direção do Enrique Diaz e um texto de um dramaturgo
vivo, o canadense Daniel Macivor. (Sempre é importante exaltar os vivos, - gosto
de frisar isso, - às vezes, perdemos muito tempo com os mortos. A arte, em
geral, literatura, teatro, cinema, música e pintura, é um monumento de pessoas
mortas. Às vezes, nós, adoradores da arte e público, perdemos muito tempo lidando
com a morte, nos esquecendo de valorizar a vida).
Nesse dia, pessoalmente,
eu estava um tanto tristinha por conta de uma série de coisas em relação ao
rumo da minha vida. Não cabe listar os motivos aqui, mas fiquei bem animada com
essa possibilidade de ver esse espetáculo. Eu sou uma pessoa que gosta de falar
de coisas boas, gosto de falar e indicar livros que eu gosto, perco muito tempo
da minha vida fazendo comentários a respeito das obras de arte que me agradam,
me afetam e me tocam. Para mim, é a melhor maneira de lutar diante do mundo. A
nossa cultura de ódio, de falar mal, de trocar informações ruins e tecer
críticas destrutivas sobre tudo que é produzido. Já está muito em alta. Por
exemplo, esses dias, no jornal El País,
foi feito uma entrevista com Marcelo Rubens Paiva[i].
O jornalista fez uma pergunta ao escritor sobre os desdobramentos da Ditadura
Militar brasileira nos tempos de hoje. O escritor Marcelo Rubens Paiva
respondeu que, às vezes, gostaria de falar sobre outras coisas, porque esse
assunto é sempre acompanhado de dor e sofrimento, sempre questionam sobre o
desaparecimento do seu pai Rubens Paiva e etc; por isso, às vezes, ele queria
escrever sobre outras coisas, principalmente esse ano que é o aniversário dos
50 anos do golpe militar, por exemplo, ele desejaria escrever sobre o filme Ninfomaníaca. Ele também disse que é
preciso revisar a lei da Anistia e repensar as heranças da Ditadura Militar no
país. Exemplificando o caso do Amarildo que foi bem parecido com o
desaparecimento de Rubens Paiva. O jornalista perguntou: “Você gostou do filme?”.
Marcelo Rubens Paiva respondeu: “achei uma bosta”.
Eu não vi o
filme, não posso dizer o que eu penso a respeito de Ninfomaníaca. Mas, essa é a mania predominante, sempre há mais
discussões em torno dos piores livros, dos assuntos polêmicos, dos ódios
imperdoáveis, das produções artísticas que são consideradas péssimas. Enfim, a
agressividade gratuita é uma mania predominante no senso comum e no jornalismo.
(Independentemente, do que eu apontei dessa entrevista, o escritor Marcelo
Rubens Paiva é uma pessoa que vale a pena ser ouvida, tem uma história
interessante e sugiro que leiam a entrevista, deixarei o link abaixo). Só
trouxe esse comentário para indicar uma mania predominante da crítica de arte
jornalística e do senso comum. De divulgar o detestável, ao invés, de divulgar
o bom, o provocativo e o inteligente. Mesmo que esses conceitos sejam relativos
em relação à arte, (isso dá outro assunto!), a crítica de arte é sempre voraz e
taxativa, ela perde tempo demais divulgando o que não deve ser lido ou visto,
do que o que pode ser visto ou lido para entender melhor o mundo atual.
Não acredito
que os leitores e os consumidores de arte saem ganhando com essa posição
agressiva e taxativa da crítica de arte atual no âmbito do senso comum e do
jornalismo.
A peça – pequena paráfrase e
considerações sobre o enredo
A história é
de duas mulheres que se conhecem por acaso em um acampamento, tornam-se amigas
e possuem uma rede de coincidências entre elas. Ambas fazem aniversário no
mesmo dia, gostam de acampar, gostam de música, conhecem uma turma de músicos,
tem medo de urso e, por um momento, fizeram terapia com o mesmo psicanalista.
A peça
começa com um cenário ao fundo. A cenografia é uma trajetória, indicando uma
encruzilhada. Entram as duas mulheres silenciosamente, elas não são nomeadas
durante o espetáculo. Uma das atrizes, a Drica Moraes, fala: “e aí, vamo
começar?”. A outra atriz, Mariana Lima, demonstra uma insegurança, sente
dúvidas se deve começar ou não. Elas
fazem um pacto com o público, nós (o público) somos como terapeutas e as duas
amigas são as analisadas.
Assim, elas
contam como se conheceram, viraram amigas e tiveram um caso amoroso no passado.
Drica, a amiga 1, diz que adora acampar, porque os seus pais não eram pessoas
práticas, então, ela associa praticidade ao acampamento. O que uniu as duas são
as coincidências, principalmente, o acampamento e o medo por ursos. A amiga 1
brinca: “se o medo fosse concretizado, teria a forma de um urso”.
Mariana
Lima, a amiga 2, deseja fazer uma banda de rock e engana a amiga 1 dizendo que
conhece uma turma de músico, da qual ambas são fãs e curtem o mesmo som. Amiga
1 também engana-a dizendo que é barman em um bar. Ambas acabam descobrindo que
elas não são o que aparentam ser. Drica é, na verdade, uma garçonete em um
aeroporto e sabe tocar guitarra. Mariana é, na verdade, uma vendedora de discos
e não sabe tocar guitarra. No aeroporto, a amiga 2 convida amiga 1 para tomar
um drink e revela toda a mentira. Drica diz: “isso só estabelece que nós duas
somos mentirosas”.
No
apartamento da amiga 1, elas ficam embriagadas e transam pela primeira vez.
Mariana foge em seguida e diz ao público: “não foi por maldade, sabe que é, eu
não tinha estrutura no dia seguinte de ser uma bissexual, por isso que eu fugi”.
Elas voltam a se reencontrar alguns anos depois, Drica está casada com um
homem, vivendo um casamento tedioso e sem paixão.
Enfim, ela
abandona o marido e vive um relacionamento com Mariana. Drica diz ao público: “a
gente era uma espécie de casal na verdade”. Nesse relacionamento, a amiga 2
consegue realizar alguns desejos, aprende a tocar guitarra e realiza uma banda
de rock. As duas passam tocar ukelelê, tocam a música “come as you are”, de Nirvana,
em uma apresentação mal sucedida. A banda de rock delas é um fracasso completo,
mesmo assim, elas permanecem juntas.
Elas
resolvem fazer, antes da concretização da banda de rock, uma terapia com o
mesmo psicanalista. Ambas fazem um pacto para confundir o terapeuta. Amiga 1
resolve ficar muda diante do terapeuta e não abrir a boca; a amiga 2 resolve
tagarelar e falar sobre coisas desnecessárias diante do terapeuta. Quando o
psicanalista descobre que faz terapia com as duas e ambas se conhecem, são namoradas,
fica louco e abandona a psicanálise.
Em uma festa
fantasia, acontece uma separação marcante entre elas. Drica vai disfarçada de
Sérgio Malandro, Mariana vai disfarçada de Luluzinha. Em alguns minutos de
tédio, Drica desaparece na festa, procurando alguma foto do Sérgio Malandro
para explicar o motivo da fantasia. Mariana, depois de alguns minutos, nota o
sumiço da companheira, começa procurá-la pela festa, encontra-a com Sasha e vê
a traição.
Drica diz: “bom,
coisas acontecem”. Elas se reencontram muito tempo depois em um acampamento.
Mariana diz que perdeu a mãe e está mais próxima de suas irmãs. Nesse
reencontro, elas se reconectam por causa do medo. Amiga 1 entra na barraca da
Amiga 2 e diz que está fugindo do urso. A peça termina ambiguamente, não
sabemos se elas morrem por causa do urso ou se o urso era fruto da imaginação
das duas para arranjar uma desculpa e ficar juntas diante do medo.
O enredo não
é linear. O espetáculo é marcado pela memória, que é ativada e reativada através
do diálogo entre as duas. A memória não possui o tempo cronológico retilíneo,
às vezes, o esquecimento se faz presente para algumas lembranças e, por isso, a
narrativa não tem compromisso em especificar as datas e os anos.
“Nada é suficiente” – comentários sobre
o espetáculo e sobre o dramaturgo Daniel Macivor.
Cabe
destacar algumas partes que chamou alguma atenção da minha parte. Mariana diz
que, na hora final, aconselharia todas as crianças tocarem guitarra. Drica diz
que, na hora final, aconselharia a todos pararem com a mania de nomear as
coisas. Esse é o momento que elas respondem a pergunta: “o que elas fariam
antes de morrer?”. Esse tema é um eixo que liga os textos de Daniel Macivor. Em
In on it, um homem tenta encontrar
uma maneira de revelar ao filho que tem uma doença terrível. As duas peças são
ligadas por essa mesma temática de enfrentamento da morte e os desdobramentos
do tempo ao longo da vida.
O humor é
mais envolvente no espetáculo A primeira
vista, dando uma aparência mais trágica ao In on it. Aqui é interessante ressaltar um excerto do depoimento de
Daniel Macivor sobre o humor em suas obras:
“ Sobre o humor nos meus textos, posso usar um exemplo:
Admiro muito o Dalai Lama, que é um homem de riso fácil. Uma vez um jornalista
o questionou sobre como era o seu dia a dia. Ele disse: ‘eu acordo e preparo
para morrer’. O que na verdade é o aspecto humorístico e trágico da vida. O que
fazemos é hilário, pois acordamos e nos preparamos para uma porção de coisas e
fazemos tudo de forma estritamente séria, mas a realidade é que podemos morrer
a qualquer momento”. (MACIVOR, Daniel. Revista e, p. 49)
Daniel
Macivor diz que a função do teatro é mexer com a gente. Inevitavelmente, os
escritores escolhem um objeto temático e tomam-lhe obsessivamente para todo o
sempre, alguns tornam suas assinaturas previsíveis e dolorosamente deliciosas,
quando o público reconhece essa assinatura, produz o efeito de uma sensação
prazerosa, tanto para o artista, quanto para o público. Arte precisa de
empatia.
No texto A primeira vista, destacam-se as
diferenças de pontos de vistas entre as duas amigas, quando interpretam a frase
na geladeira: “Nada é suficiente”, essa é a solução textual para marcar a
oposição entre as duas amigas. Do ponto de vista de Mariana, é uma frase que
indica a não finitude, uma possibilidade de sempre ter algo mais adiante, um
otimismo, ainda não é o bastante. Do ponto de vista de Drica, significa a finitude,
não existe possibilidade de ter algo adiante, um pessimismo, nada é bastante
diante da vida, é, na realidade, uma infinitude do nada que não preenche a vida
e cria banalidade atrás de banalidade.
Conclusão
É um
espetáculo que, infelizmente, acabou e trouxe uma alegria na minha vida. O
assunto não é fácil, mas Clarice Lispector já dizia: “com prazer não se brinca,
pois dele se morre”. E, apesar de, morrer, é possível viver uma vida prazerosa.
A vida, dessas duas amigas, marcada por encontros e desencontros,
transformações e coincidências, deram um sentido à minha.
E, só para
citar uma escritora viva, a mexicana Ángeles Mastretta que diz algumas frases
lindas a respeito da amizade, tempo, amor e surpresa. Aliás, a amizade é o
relacionamento que torna possível a criação de conceitos e questionamentos
existenciais, sem os ares autoritários da família, dos professores e dos pais. Há
filósofos que dizem que a amizade é a forma perfeita para filosofia. A autora
diz o seguinte no livro Mal de Amores:
“Não esperava encontrar-se com alguém daquele jeito, tinha previsto dar com um
gringo de espírito indiferente, e outra vez teve que reconhecer a verdade numa
das frases de Milagros: a vida foi feita para nos desconcertar”.
E, assim,
finalizo, a vida foi feita para nos desconcertar. E quando o teatro, a
literatura, a poesia e a música fazem esse mesmo efeito que a vida faz, é sinal
que a arte ainda afeta as pessoas e produz a habilidade de enriquecimento da
subjetividade. Sendo, às vezes, mais eficazes que antidepressivos, álcool,
psicanálise e confissões confusas com amigos indiferentes que conhecemos na rua
e nos esquecemos no dia seguinte. Quando a arte nos desconcerta, sentimos que a
dor não é individual, mas é coletiva, isso alivia.
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