sábado, 12 de abril de 2014

A primeira vista (domingo 23/03)

Uma justificativa para crítica

Não é o enfoque desse blog escrever crítica literária, teatral e/ou de cinema.  Mesmo gostando muito dessas produções artísticas, eu acredito que para tecer críticas é preciso saber fazer, dominar alguns conhecimentos que requer tempo de aprofundamento, reflexão e leitura. Ainda não saberia tecer uma crítica com profundidade. Por isso, não é o enfoque do blog; mas, eu acredito e vejo a importância da crítica ao lado dos leitores e consumidores de produtos da arte. A crítica é fundamental, não para ensinar o público o que deve ser lido, visto ou amado. A importância dela é de, em primeiro lugar, divulgação, e, em segundo lugar, reconhecimento histórico da produção artística. Principalmente, a função da crítica é de educação política do leitor apaixonado.
Nesse caso, vou abrir uma exceção. Em 2009, 2012 e 2013, Enrique Diaz fez parceria com um dramaturgo canadense chamado Daniel Macivor que rendeu as montagens: In on It, A primeira vista e Cine Monstro. As peças In on it e A primeira vista estrearam em 2012 no teatro Alfredo Mesquita, que ficou fechado para reformas. A exceção é, justamente, porque eu tenho carinho pelo teatro Alfredo Mesquita e fiquei feliz com o retorno da Drica Moraes depois de enfrentar o câncer. Em 2012, eu assisti à peça In on it, mas não vi o espetáculo de estreia, em São Paulo, A primeira vista, estreia também do Alfredo Mesquita, depois de ficar fechado para reformas.
No dia 23 de março de 2014, assisti ao espetáculo A primeira Vista no Itaú Cultural, última apresentação aqui em São Paulo e última da temporada. Não vi a estreia, mas vi o último dia, foi uma oportunidade de ver com meus próprios olhos uma atriz que tenho muito carinho, a oportunidade de ver outra direção do Enrique Diaz e um texto de um dramaturgo vivo, o canadense Daniel Macivor. (Sempre é importante exaltar os vivos, - gosto de frisar isso, - às vezes, perdemos muito tempo com os mortos. A arte, em geral, literatura, teatro, cinema, música e pintura, é um monumento de pessoas mortas. Às vezes, nós, adoradores da arte e público, perdemos muito tempo lidando com a morte, nos esquecendo de valorizar a vida).
Nesse dia, pessoalmente, eu estava um tanto tristinha por conta de uma série de coisas em relação ao rumo da minha vida. Não cabe listar os motivos aqui, mas fiquei bem animada com essa possibilidade de ver esse espetáculo. Eu sou uma pessoa que gosta de falar de coisas boas, gosto de falar e indicar livros que eu gosto, perco muito tempo da minha vida fazendo comentários a respeito das obras de arte que me agradam, me afetam e me tocam. Para mim, é a melhor maneira de lutar diante do mundo. A nossa cultura de ódio, de falar mal, de trocar informações ruins e tecer críticas destrutivas sobre tudo que é produzido. Já está muito em alta. Por exemplo, esses dias, no jornal El País, foi feito uma entrevista com Marcelo Rubens Paiva[i]. O jornalista fez uma pergunta ao escritor sobre os desdobramentos da Ditadura Militar brasileira nos tempos de hoje. O escritor Marcelo Rubens Paiva respondeu que, às vezes, gostaria de falar sobre outras coisas, porque esse assunto é sempre acompanhado de dor e sofrimento, sempre questionam sobre o desaparecimento do seu pai Rubens Paiva e etc; por isso, às vezes, ele queria escrever sobre outras coisas, principalmente esse ano que é o aniversário dos 50 anos do golpe militar, por exemplo, ele desejaria escrever sobre o filme Ninfomaníaca. Ele também disse que é preciso revisar a lei da Anistia e repensar as heranças da Ditadura Militar no país. Exemplificando o caso do Amarildo que foi bem parecido com o desaparecimento de Rubens Paiva. O jornalista perguntou: “Você gostou do filme?”. Marcelo Rubens Paiva respondeu: “achei uma bosta”.
Eu não vi o filme, não posso dizer o que eu penso a respeito de Ninfomaníaca. Mas, essa é a mania predominante, sempre há mais discussões em torno dos piores livros, dos assuntos polêmicos, dos ódios imperdoáveis, das produções artísticas que são consideradas péssimas. Enfim, a agressividade gratuita é uma mania predominante no senso comum e no jornalismo. (Independentemente, do que eu apontei dessa entrevista, o escritor Marcelo Rubens Paiva é uma pessoa que vale a pena ser ouvida, tem uma história interessante e sugiro que leiam a entrevista, deixarei o link abaixo). Só trouxe esse comentário para indicar uma mania predominante da crítica de arte jornalística e do senso comum. De divulgar o detestável, ao invés, de divulgar o bom, o provocativo e o inteligente. Mesmo que esses conceitos sejam relativos em relação à arte, (isso dá outro assunto!), a crítica de arte é sempre voraz e taxativa, ela perde tempo demais divulgando o que não deve ser lido ou visto, do que o que pode ser visto ou lido para entender melhor o mundo atual.
Não acredito que os leitores e os consumidores de arte saem ganhando com essa posição agressiva e taxativa da crítica de arte atual no âmbito do senso comum e do jornalismo.  

A peça – pequena paráfrase e considerações sobre o enredo

A história é de duas mulheres que se conhecem por acaso em um acampamento, tornam-se amigas e possuem uma rede de coincidências entre elas. Ambas fazem aniversário no mesmo dia, gostam de acampar, gostam de música, conhecem uma turma de músicos, tem medo de urso e, por um momento, fizeram terapia com o mesmo psicanalista.
A peça começa com um cenário ao fundo. A cenografia é uma trajetória, indicando uma encruzilhada. Entram as duas mulheres silenciosamente, elas não são nomeadas durante o espetáculo. Uma das atrizes, a Drica Moraes, fala: “e aí, vamo começar?”. A outra atriz, Mariana Lima, demonstra uma insegurança, sente dúvidas se  deve começar ou não. Elas fazem um pacto com o público, nós (o público) somos como terapeutas e as duas amigas são as analisadas.
Assim, elas contam como se conheceram, viraram amigas e tiveram um caso amoroso no passado. Drica, a amiga 1, diz que adora acampar, porque os seus pais não eram pessoas práticas, então, ela associa praticidade ao acampamento. O que uniu as duas são as coincidências, principalmente, o acampamento e o medo por ursos. A amiga 1 brinca: “se o medo fosse concretizado, teria a forma de um urso”.
Mariana Lima, a amiga 2, deseja fazer uma banda de rock e engana a amiga 1 dizendo que conhece uma turma de músico, da qual ambas são fãs e curtem o mesmo som. Amiga 1 também engana-a dizendo que é barman em um bar. Ambas acabam descobrindo que elas não são o que aparentam ser. Drica é, na verdade, uma garçonete em um aeroporto e sabe tocar guitarra. Mariana é, na verdade, uma vendedora de discos e não sabe tocar guitarra. No aeroporto, a amiga 2 convida amiga 1 para tomar um drink e revela toda a mentira. Drica diz: “isso só estabelece que nós duas somos mentirosas”.
No apartamento da amiga 1, elas ficam embriagadas e transam pela primeira vez. Mariana foge em seguida e diz ao público: “não foi por maldade, sabe que é, eu não tinha estrutura no dia seguinte de ser uma bissexual, por isso que eu fugi”. Elas voltam a se reencontrar alguns anos depois, Drica está casada com um homem, vivendo um casamento tedioso e sem paixão.
Enfim, ela abandona o marido e vive um relacionamento com Mariana. Drica diz ao público: “a gente era uma espécie de casal na verdade”. Nesse relacionamento, a amiga 2 consegue realizar alguns desejos, aprende a tocar guitarra e realiza uma banda de rock. As duas passam tocar ukelelê, tocam a música “come as you are”, de Nirvana, em uma apresentação mal sucedida. A banda de rock delas é um fracasso completo, mesmo assim, elas permanecem juntas.
Elas resolvem fazer, antes da concretização da banda de rock, uma terapia com o mesmo psicanalista. Ambas fazem um pacto para confundir o terapeuta. Amiga 1 resolve ficar muda diante do terapeuta e não abrir a boca; a amiga 2 resolve tagarelar e falar sobre coisas desnecessárias diante do terapeuta. Quando o psicanalista descobre que faz terapia com as duas e ambas se conhecem, são namoradas, fica louco e abandona a psicanálise.  
Em uma festa fantasia, acontece uma separação marcante entre elas. Drica vai disfarçada de Sérgio Malandro, Mariana vai disfarçada de Luluzinha. Em alguns minutos de tédio, Drica desaparece na festa, procurando alguma foto do Sérgio Malandro para explicar o motivo da fantasia. Mariana, depois de alguns minutos, nota o sumiço da companheira, começa procurá-la pela festa, encontra-a com Sasha e vê a traição.
Drica diz: “bom, coisas acontecem”. Elas se reencontram muito tempo depois em um acampamento. Mariana diz que perdeu a mãe e está mais próxima de suas irmãs. Nesse reencontro, elas se reconectam por causa do medo. Amiga 1 entra na barraca da Amiga 2 e diz que está fugindo do urso. A peça termina ambiguamente, não sabemos se elas morrem por causa do urso ou se o urso era fruto da imaginação das duas para arranjar uma desculpa e ficar juntas diante do medo.
O enredo não é linear. O espetáculo é marcado pela memória, que é ativada e reativada através do diálogo entre as duas. A memória não possui o tempo cronológico retilíneo, às vezes, o esquecimento se faz presente para algumas lembranças e, por isso, a narrativa não tem compromisso em especificar as datas e os anos.

“Nada é suficiente” – comentários sobre o espetáculo e sobre o dramaturgo Daniel Macivor.

Cabe destacar algumas partes que chamou alguma atenção da minha parte. Mariana diz que, na hora final, aconselharia todas as crianças tocarem guitarra. Drica diz que, na hora final, aconselharia a todos pararem com a mania de nomear as coisas. Esse é o momento que elas respondem a pergunta: “o que elas fariam antes de morrer?”. Esse tema é um eixo que liga os textos de Daniel Macivor. Em In on it, um homem tenta encontrar uma maneira de revelar ao filho que tem uma doença terrível. As duas peças são ligadas por essa mesma temática de enfrentamento da morte e os desdobramentos do tempo ao longo da vida.
O humor é mais envolvente no espetáculo A primeira vista, dando uma aparência mais trágica ao In on it. Aqui é interessante ressaltar um excerto do depoimento de Daniel Macivor sobre o humor em suas obras:
“ Sobre o humor nos meus textos, posso usar um exemplo: Admiro muito o Dalai Lama, que é um homem de riso fácil. Uma vez um jornalista o questionou sobre como era o seu dia a dia. Ele disse: ‘eu acordo e preparo para morrer’. O que na verdade é o aspecto humorístico e trágico da vida. O que fazemos é hilário, pois acordamos e nos preparamos para uma porção de coisas e fazemos tudo de forma estritamente séria, mas a realidade é que podemos morrer a qualquer momento”. (MACIVOR, Daniel. Revista e, p. 49)
Daniel Macivor diz que a função do teatro é mexer com a gente. Inevitavelmente, os escritores escolhem um objeto temático e tomam-lhe obsessivamente para todo o sempre, alguns tornam suas assinaturas previsíveis e dolorosamente deliciosas, quando o público reconhece essa assinatura, produz o efeito de uma sensação prazerosa, tanto para o artista, quanto para o público. Arte precisa de empatia.
No texto A primeira vista, destacam-se as diferenças de pontos de vistas entre as duas amigas, quando interpretam a frase na geladeira: “Nada é suficiente”, essa é a solução textual para marcar a oposição entre as duas amigas. Do ponto de vista de Mariana, é uma frase que indica a não finitude, uma possibilidade de sempre ter algo mais adiante, um otimismo, ainda não é o bastante. Do ponto de vista de Drica, significa a finitude, não existe possibilidade de ter algo adiante, um pessimismo, nada é bastante diante da vida, é, na realidade, uma infinitude do nada que não preenche a vida e cria banalidade atrás de banalidade.

Conclusão

É um espetáculo que, infelizmente, acabou e trouxe uma alegria na minha vida. O assunto não é fácil, mas Clarice Lispector já dizia: “com prazer não se brinca, pois dele se morre”. E, apesar de, morrer, é possível viver uma vida prazerosa. A vida, dessas duas amigas, marcada por encontros e desencontros, transformações e coincidências, deram um sentido à minha.
E, só para citar uma escritora viva, a mexicana Ángeles Mastretta que diz algumas frases lindas a respeito da amizade, tempo, amor e surpresa. Aliás, a amizade é o relacionamento que torna possível a criação de conceitos e questionamentos existenciais, sem os ares autoritários da família, dos professores e dos pais. Há filósofos que dizem que a amizade é a forma perfeita para filosofia. A autora diz o seguinte no livro Mal de Amores: “Não esperava encontrar-se com alguém daquele jeito, tinha previsto dar com um gringo de espírito indiferente, e outra vez teve que reconhecer a verdade numa das frases de Milagros: a vida foi feita para nos desconcertar”.
E, assim, finalizo, a vida foi feita para nos desconcertar. E quando o teatro, a literatura, a poesia e a música fazem esse mesmo efeito que a vida faz, é sinal que a arte ainda afeta as pessoas e produz a habilidade de enriquecimento da subjetividade. Sendo, às vezes, mais eficazes que antidepressivos, álcool, psicanálise e confissões confusas com amigos indiferentes que conhecemos na rua e nos esquecemos no dia seguinte. Quando a arte nos desconcerta, sentimos que a dor não é individual, mas é coletiva, isso alivia.
















[i] http://brasil.elpais.com/brasil/2014/04/03/politica/1396562225_091459.html

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Confissões de uma mulher feia

À todas as mulheres do mundo

Caminhamos pelas ruas, comemos cachorro quente com coca-cola. Somos gordas ou magras, temos um sorriso banguela, um rosto desarmônico e não somos mulheres sedutoras. Nunca nos fizeram uma bossa nova, nunca nos dedicaram uma poesia, não ganhamos nenhum concurso de beleza. Somos as rejeitadas. No máximo, satisfazemos sexualmente os maridos, noivos e namorados, quando as boas e belas mulheres não estão olhando. Somos as migalhas, o pequeno vestígio do bolo de chocolate.
Caminhamos pelas ruas, somos seres invisíveis. Mas, ainda assim, somos notadas. No consultório do ginecologista, as nossas vaginas são, impessoalmente, acariciadas sem intimidade ou carinho. Sentimos, então, o peso de não sermos belas, quando não podemos ter intimidade com as divas ou com os bons partidos. Os homens nos tornam piadas, somos motivos de riso em bares e em banheiros masculinos.
Você não sabe de mim, faço parte desse grupo de mulheres. Você não vai me chamar de diva, não vai ver o meu rosto na tela do cinema. Eu estava na esquina mais próxima do apartamento, onde você mora. Deitada sobre o asfalto, meu corpo seminu foi esfaqueado duas vezes, depois que um homem robusto, muito bonito, me estuprou.
Caminhamos pelas ruas, não percebemos que, ao nosso lado, existem pessoas. Eu era uma pessoa, mesmo sendo uma mulher feia. Fui estuprada, porque eu era uma mulher, andando no meio da noite, sozinha, não usando roupas decentes. Eu achava que ninguém iria perceber o meu corpo, mas o estuprador percebeu. Não posso nem dizer que me senti humilhada novamente, porque você vai dizer: “você devia ficar feliz! Afinal, nunca vi uma mulher bonita reclamar que foi estuprada. É só mulher feia”.
Você vai dizer isso, mas nunca me notou, porque eu era invisível, não era uma mulher que você convidaria para jantar. Agora, não existo mais. Não sou mais uma presença desconfortável à sala de estar. Mas, você vai repetir: “você devia ficar feliz! Afinal, um homem apareceu na sua vida e te notou”. Não foi um homem que me notou, foi um estuprador que me matou.
Caminhamos, invisíveis, pelas ruas. Somos mortas no asfalto todos os dias. Não pense que é uma realidade morna, não pense que é menos por que foi com uma mulher feia. Você não me conhece, não me trate como um animal. Os meus sofrimentos são verdadeiros, eu fui humilhada, porque eu existia. Ninguém vai recordar que, um dia, uma mulher feia morreu no asfalto esfaqueada por um homem bonito; depois do estupro, ela agonizou e bufou sangue.  Mesmo assim, você vai dizer: “você devia ficar feliz! Nunca vi mulher bonita dizer que foi estuprada”. Eu não posso mais ficar feliz ou triste, porque eu não existo mais. Não sou que escrevo essas confissões, não posso mais ter sentimentos, não posso discursar por mim. Mataram-me, porque eu fui uma mulher andando sobre o asfalto. O estuprador não sabia que eu era uma mulher feia, ele me estuprou, porque eu era uma mulher no lugar errado e no momento errado. Mataram-me e, agora, não sou mais uma mulher concreta, eu não existo mais. Do dia para noite, me tornei uma mulher morta sobre o asfalto. Você não notou de novo, porque eu era uma mulher feia.