segunda-feira, 10 de março de 2014

A memória de Pablo Barbosa Cubas

Não é por estar na sua presença meu prezado rapaz
mas você vai mal/ mas vai mal demais 
[...]
e se vai continuar enrustido
com essa cara de marido 
Por trás de um homem triste
há sempre uma mulher feliz 
atrás de uma mulher mil 
homens sempre tão gentis
Deixa a menina sambar, rapaz! 
Chico Buarque. Deixe a menina 

O que eu posso dizer? É uma história comum. A última coisa que eu me lembro ver: foi a paisagem na minha janela. A imagem da minha visão era inteira de prédios, pessoas selvagens tropeçando umas as outras e um céu, tão poluído, que já tinha perdido o tom azul puro. Há muito tempo, não tinha recordações sobre o sabor do mar, o cheiro de ar verdadeiro e noções de pessoas que olham umas as outras, principalmente, quando andam banalmente.
Quem eu sou? Desculpa, minhas amadas mulheres, essa não é a pergunta certa. Se fizeram essa pergunta, erraram. As perguntas certas são: o que eu estou fazendo? Pra quem eu faço o que eu costumo fazer sempre? Eu sou jornalista investigativo, moro no centro de São Paulo, sempre morei sozinho.  Trabalho no Jornal “Notícias toda a hora”, uso o pseudônimo Gregor Fernandes, é o meu nome falso para proteger a minha vida pessoal. Os meus textos são muito lidos pela população. Por que? Porque eu escrevo as coisas que a população quer ouvir.
Por exemplo, conheço uma cantora travesti de punk rock, o nome dela é Aline, mas ninguém quer ouvir o que ela pensa do mundo. O que as pessoas querem ouvir? É a morte dos travestis, é como eles não conseguem sustentar a própria vida, simplesmente, porque existem do que jeito que eles existem. Esse exemplo é bem simples, mas tem outros.  Eu conheço um negro chamado Erik, ele é leitor de Proust e conhece quase tudo a respeito do impressionismo francês no piano. Mas ninguém quer ouvir a vida de um homem culto e o seu conhecimento de arte, principalmente, se esse homem não é um homem erudito branco. Por isso, eu escrevo sobre a morte de pessoas, miséria e decadência, os meus leitores ficam eruditos em cima de miséria e destruição. Na maioria das vezes, os leitores de jornal ficam eruditos em cima da destruição de pessoas densas. A vida não é justa, minhas leitoras, a miséria é um atributo da beleza e da inteligência. Não fiquem tristes, moças bonitas.
Quanto a mim, não posso dizer que já me importei com o mundo. Mas também não posso dizer que nunca me importei. Eu sempre dormi em paz em um apartamentinho, pagando as contas do fim de mês e comprando boas roupas. Sempre dormi bem, tenho boa alimentação, sou até vegetariano, nunca tive pesadelos.
Minhas lindas mulheres, peço que não criem um juízo errado de mim. Ainda não contei a minha história. Eu sou um homem canalha. Descobri isso depois que eu morri. Quando isso aconteceu? Alguns meses, seis ou oito; não sei direito. Perdemos a noção do tempo depois da morte, aprendemos a nos lembrar e, depois, (é o que dizem) esquecemos de tudo. De algum modo, esquecer é uma dádiva. Ainda bem que todos nós, um dia, inevitavelmente, seremos esquecidos.
Eu estava no meu quarto. A padaria e um prédio foram as últimas que eu vi, quando eu era um homem vivo. Conversava com Angélica Natel, ela tinha me dito:
- você nunca amou ninguém, você só amou você mesmo. Você é um canalha! – Angélica, talvez, bateu a porta do meu apartamento com raiva e foi embora. Ela cambaleou e pediu um Táxi, voltou para casa que ela tinha construído com o seu primeiro marido Matheus. Angélica queria estruturar a família dela, era uma mulher de 36 anos que estava perdida, o esforço em construir uma imagem, um casamento, uma casa e um mundo não significava nada. Ela era uma mulher sozinha no mundo, nunca tinha se dado conta disso, sempre se entregou demais para ser amada. Nunca amou.
- eu nunca disse que eu era teu – acho que eu disse isso na nossa última briga
- mas você disse, eu me lembro, - Angélica já chorava copiosamente, desnuda. Era uma linda mulher triste, pedindo para não ficar sozinha, - eu me lembro. Você disse que me amava, que não ia me abandonar. Agora, você tá me abandonando.
- eu não estou te abandonando, Angélica. Eu só estou sendo a pessoa que eu fui sempre.
- você me prometeu – gritava Angélica.
- eu prometi que ia amar você. Eu te amo muito. Mas não te prometi exclusividade
- é isso então? Vai me largar por aquela vadia de vestido preto
- ela é minha amiga
- eu também fui sua amiga antes de ficar com você
- foi uma consequência
Angélica estapeou o meu rosto. Caminhei até a janela e vi o prédio:
- vai embora – eu disse
- você nunca amou ninguém. Você só amou você mesmo
Fiquei em silêncio. Angélica bateu a porta e foi embora. Cambaleando, quebrou o salto, andou descalça pela rua. Era a mais triste de todas as mulheres, procurando um táxi para ir embora.  Ela desapareceu quando entrou no táxi, o automóvel levou a mulher para sua doce prisão domiciliar. Então, eu vi a padaria.
Entraram no meu apartamento, só ouvi os sons de tiro. Morri.
Um dia antes da minha morte, conversei com a minha melhor amiga Billy Carrey. A risada de Carrey era o traço que a distinguia dos outros mortais, cabelos longos, ruivos. Era uma mulher deslumbrante, provavelmente, seria uma namorada, talvez, até esposa. Mas nós dois tínhamos tudo em comum, inclusive o gosto sexual. Gostávamos muito de mulheres.
- você sabe que eu gosto de todo o tipo de mulher
- eu sei Pablo, sei sim – Carrey disse, - você é currículo! Querido, você é currículo pras mulheres
- essa história de currículo! Só você mesmo – eu respondi rindo – enfim, eu gosto de mulher:
- as feias e as bonitas – (Nós, eu e Carrey, falávamos juntos), - não importa, o que importa é mulher
- como vai com a Milena? – eu perguntei
- ela sumiu. Está com problemas com a mãe. É uma pena, gosto muito dela, Pablo, gosto mesmo. Mas essa situação é muito tensa para nós duas, a mãe dela é uma louca, já ameaçou a filha de morte, já me ameaçou de morte. Ontem, a mãe da Milena tentou se matar. A Mileninha está arrasada, eu não sei o que fazer. Me sinto impotente.
- nossa Carrey! Que barra pesada!
Carrey se despediu de mim, foi embora, beijou o meu rosto.
- você! Meu querido, tem muita mulher do seu lado, tem mulher demais – ela riu, - eu fico até confusa. Se cuida, rapazinho, se cuida!
- você também! Mas onde você vai?
- tô atrasada, tenho que convencer um cliente a comprar um apartamento e eu já devia estar na Vila Maria. Mas, depois, você me conta sobre a sua vida, eu quero saber como está esse coração, eu quero saber como anda essa cabeça confusa. Beijo, querido!
- tchau Carrey!
Carrey foi embora, caminhou até o carro vermelho dela. Era, de fato, uma mulher deslumbrante. Nesse dia, eu falei com um dos meus grandes amores, mesmo um homem como eu que assume esse estilo de vida, tem um ou dois (ou mais) mulheres inesquecíveis que marcaram a trajetória. Era uma mulher comum, o nome dela era Sofia.  Provavelmente, o homem que tocava as costas nuas dela era o novo namorado, estava apaixonada. A paixão é um bom ingrediente para beleza.
O novo namorado não era muito atento. Sofia me percebeu, olhou-me desafiante. Eu senti o desejo original por aqueles finos lábios, belos e únicos. Não resisti, abracei minha velha conhecida e não perguntei como estava, perguntei como sentia. Sofia respondeu:
- estou um pouco sem saber como responder essa pergunta – Sofia riu
- tá bem? Não tá bem?
- tô bem. Não sei se já disse. Mas tenho a impressão que você, Pablo, usa essas perguntas pra atrair mulheres
- não entendi – eu respondi
- você faz perguntas desconcertantes, porque é o seu maior charme. Você é um homem irresistível mesmo, não por que é belo, nem é questão de grana. É questão de....É questão de... de..
- de quê, meu amor?
- você não quer saber o que as mulheres querem. Isso é engraçado! Antes de conhecer você, eu tinha tanto medo, me sentia tão insegura, não sabia ficar sozinha de jeito nenhum. Quando eu te conheci, tudo mudou, você me ajudou a não ter mais medo
- você tinha medo? Do que você tinha medo?
- eu tinha medo de ficar comigo. Hoje, eu posso ficar com qualquer um, Pablo, posso ficar com qualquer um sem apriosionar. Porque eu gosto de ficar comigo
- fui eu que fiz isso? – perguntei surpreso
- não foi não. Fui eu. Mas você deu um empurrãozinho.
Ela beijou o meu rosto. Eu também a beijei no rosto. Cinco minutos em silêncio, nós dois não nos aguentamos, nos beijamos na boca. O novo namorado viu e ficou enfurecido.
- você tá louco, mano!
Ele disse:
- ela é minha namorada! Ela é minha mulher!
Sofia tentou separar a briga. Eu fiquei quieto.
- você entendeu? Ela é minha namorada, não é sua!
- desculpa, eu não vi a placa na cabeça dela dizendo: “propriedade do Zé ruela”
Eu beijei o rosto da Sofia. Não tenho espírito de homem briguento, sou muito covarde. Sofia tentou acalmar o Zé Ruela, mas era um homem estúpido.
- cala a boca vadia!
Eu disse:
- babaca! Não chama a Sofia assim
Ele tentou socar o meu rosto. Eu soquei primeiro. Em qualquer briga, (como eu já me meti em algumas, porque sempre tem um homem estúpido em algum lugar), é sempre bom ser rápido e dar o soco primeiro. Sofia vestiu o casaco, caminhou para casa. Eu corri atrás da moça.
- vai embora assim?
- ele era um homem idiota, não é mesmo?
- parece que sim – eu disse
- nós, mulheres, nunca nos livramos de um idiota, né – ela disse sorrindo
- me desculpa – eu respondi
- se desculpar, não precisa, dessa vez, você fez um papel que não combina com você
- é! Papel de bom moço e decente nunca foi a minha cara – eu disse
- nunca foi mesmo. Ainda bem. De bons moços, o mundo tá cheio. Acho que é por isso que o mundo anda chato e tedioso – Sofia sorriu.
- isso é verdade! Por favor, Sofia, não deixa que esse babaca faça parte da sua vida de novo
- não vou deixar não – Sofia disse, - mas, você tem razão
- tenho?
- tem sim. Nunca esqueci a cantada que você me deu
- do canalha
Ela riu e disse:
- um canalha é mais feminista que as feministas. Ele vai fazer tudo que não pode com os dogmas sexistas que uma mulher aprende, vai tirar a moça da zona de conforto e, depois, vai pedir para que ela siga adiante sendo ela mesma
- eu falei aquilo de piada – eu disse
- é uma piada com algum fundo de verdade. Tchau, moço!
Sofia beijou minha boca. Ela caminhou pela calçada escura, o seu belo corpo desaparecendo entre a escuridão. O humor é uma arma contra os opressores, sem dúvida, é a arma mais impactante, porque só entende o humor quem compreende a cultura e o imaginário que vive. Essa piada de canalha só entende uma mulher que aprendeu o que é viver com dogmas sobre o que é ser mulher. Por isso, escrevo para elas, às vezes, escrevo para seduzir e tirar as suas roupas; às vezes, eu escrevo, porque eu quero transformar o mundo em um parque de diversão de canalhas.
Se um homem canalha é perigoso para nossa cultura, imagina uma mulher canalha. Sofia tinha aprendido muito com o nosso passado, eu a amei tanto, ela me amou tanto. A nossa escolha foi, em respeito ao amor, nos deixar plenamente livres e nos preocupar um com outro. Sofia caminhou firme e livre.  A beleza não é o único atributo que deixa uma mulher irresistível, a liberdade é um atributo ainda mais sedutor. Um babaca tem medo de mulheres livres, mas perde a cabeça quando encontra uma mulher como Sofia, porque o que ele quer não é a Sofia, ele quer a posse da liberdade dela. Um babaca sente ciúmes é da maneira idiossincrática que uma mulher, como a Sofia, vive a vida; ele não a deseja, ele deseja a vida da Sofia, deseja a liberdade e não a pessoa. O poder é a pior droga, nós, homens, aprendemos serem homens por causa desse vício, nos embriagamos de dogmas e viramos exatamente o que somos. Babacas.
Eu me libertei dessa condição, não sou um babaca. É importante fazer essa distinção, uma coisa é ser um babaca, outra coisa muito diferente é um homem canalha. O Zé Mané do ex-namorado da Sofia tentou correr atrás dela pelas ruas, eu estava no meio do caminho, ele me bateu. Eu apanhei, a polícia apareceu logo em seguida.
- ele tentou agredir uma mulher
- você quer deixar uma queixa
- quero sim
O ex- namorado Zé ruela da Sofia foi preso pela polícia. Pelo que sei, Sofia arranjou outro namorado. O Zé ruela ficou triste, chamou a moça de vadia, de vagabunda e falou para um amigo meu assim: “ela não trepa bem!”. Espalhou a notícia. Sofia estava feliz, mesmo com outro namorado, ela nunca me abandonou, nunca se importou e caminhava firme. É, meu amigo Zé ruela, você precisa entender que a mulher sorri com outros homens e você só vai espalhar notícias falsas. Você, Zé ruela, lambuzou-se de poder e masculinidade. Você, Zé ruela, é só mais um babaca solitário e Sofia me disse que você quando criança, para comprovar o seu poder, media o tamanho do seu pau em frente os seus amigos. Além de babaca, você é um inseguro, não tenha dúvidas que ela usou essa insegurança para tirar um sarro. Não tenha dúvidas, Zé ruela, ela atingiu o objetivo que queria. Transou com você e foi embora para sempre. Você acreditou que o seu pau era grande, bonito e gostoso. Você acreditou, Zé Ruela, mas ela só encheu mesmo a sua bola e massageou o seu belo ego previsível. Zé ruela seja um babaca, fica mais fácil para mim, porque enquanto existir homens assim, os canalhas ainda terão uma função no mundo. Eu vou comer as suas mulheres e elas vão aprender a ser exuberantemente livres.
O namorado da Sofia foi o último Zé Ruela que enfrentei corpo a corpo. Angélica Natel, a última mulher da minha vida, tinha um marido muito ciumento. Eu suspeito que foi esse homem que me assassinou. Mas não tenho certeza. Na primeira cena, eu disse que a última coisa que eu vi foram um prédio e uma padaria. Quando ouvi um barulho incompreensível e morri. Foi um tiro no meu coração.
Angélica recebeu a notícia pelo telefone. Sofia recebeu a notícia por Carrey. Elas se encontraram no meu enterro.
- você conhecia ele? – perguntou Angélica
- conhecia sim – respondeu Sofia
- você foi mais outra vadiazinha dele?
- eu fui uma mulher na vida dele. Eu amei ele
- eu amei ele. Eu amei ele como ninguém, entendeu, eu fui a única que amou ele de verdade. Você foi só outra vadiazinha que ele usou e jogou fora – disse Angélica
- desculpa, moça, eu não vou fazer essa cena ridícula. Eu vim me despedi do meu amigo
- Sofia, vem cá – disse Carrey, - deixa ela se matar aí
- pera aí! – disse Angélica, - vem cá, por favor
Sofia hesitou e disse:
- Carrey, tá tudo bem, eu não vim aqui pra fazer cena ridícula nenhuma
- você vai ficar bem?
- vou sim – respondeu Sofia
- você tratava ele como amigo? – perguntou Angélica
- eu vou tratar um homem que amei como? Como um inimigo?
- eu também amei ele
- não duvido. Não vou brigar aqui pra ver que amou mais ele. Nós duas amamos o mesmo homem
- eu sou casada
- cadê o seu marido?
- tá preso. Acho que, talvez, foi ele que assassinou Pablo
- ele machucou você? – perguntou Sofia
- tentou me bater. Na verdade, ele já me bateu algumas vezes, eu gostava dele, sabe, gostava mesmo. Sempre desejei construir família, ter filhos e uma casa.
- um sonho comum
- pois é, eu sempre sonhei. Ele me deu tudo isso, mas me tratava como um animal, eu obedecia. Teve um dia que eu tava sozinha numa festa, usava a minha melhor roupa, ele não notou como eu fazia tudo aquilo pra ele. Ficava horas na frente do espelho para ser uma mulher bonita. Adivinha, então, quem notou isso? Pablo
- Pablo Barbosa Cubas! – Sofia riu
- ele me chamou de bonita, me deu flores, me tratava como uma princesa, eu me sentia uma mulher especial. Fiz tudo para ele, dei tudo pra ele, esperando que ele me libertasse de um casamento e uma situação desastrosa
- ele não te libertou?
- não, ao invés disso, ele morreu
- bom, ele nunca teve talento pra príncipe encantado
- mas ele me prometeu
- ele prometeu te amar, ele não te prometeu a liberdade. A liberdade vem sempre de dentro pra fora, primeiro. Uma pessoa livre não aprisiona ninguém, ao contrário, deixa livre para escolher. É claro, ter uma consciência é um privilegio, ter subjetividade, então, minha querida, é luxo! Luxo!
- por que você tá falando isso pra mim?
- porque ele te amou, por isso, eu também te amo. Por isso, eu te respeito
- mesmo que eu te odeie por ele ter te amado também, mesmo eu te maltratando?
- mesmo assim
Sofia beijou Angélica no rosto. Angélica se sentiu humilhada, chorou apenas. Eu  sorri, finalmente, eu morri bem. Minhas queridas leitoras, eu sou o homem mais feliz do mundo, assassinaram-me literariamente. Há anos na história da literatura ocidental, lindas mulheres morreram, os autores sempre mataram essas figuras densas. Julieta morreu para se libertar e libertar Romeu, Ana Karenina suicidou nos trilhos do trem por conta de amor, Lady Macabeth enlouqueceu porque também queria o poder dos homens, Ofélia sabia demais, morreu ambiguamente. Sofia não morreu, vive libertada de dogmas sexuais. Angélica é uma mulher viva e, quem sabe, um dia se liberta desse imaginário genocida que matou milhares de pessoas por conta do gênero feminino. Vocês, queridas leitoras, ouviram a história do primeiro homem assassinado na literatura. Também ouviram a história de duas mulheres que permaneceram vivas e continuaram em frente.

Eu sou um homem morto. 

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