domingo, 1 de dezembro de 2013

Os bruxos

Bebi água. Era uma conferência, todas as espécies de criaturas estranhas e feiticeiros estavam nesse evento.  Eu observei uma figura incomum dentre todos eles, chamavam de Robert, ele possuía uma tatuagem no braço e uma nas costas enorme de um dragão (que só mais tarde eu iria saber da existência dessa tatuagem).  Eu estava nervoso, mas alguma coisa, que não sei explicar, me fez ficar fascinado pela imagem daquele bruxo.
Ele andava devagar, falava arrastado, caminhava um passo de cada vez. As mãos balançam em câmara lenta, tinham ritmo próprio. Robert não me pareceu um bruxo comum. Chamaram o meu nome, eu ia dar uma palestra sobre bruxaria moderna, o tema era a relação entre a fragilidade humana e o ácido fênico. O tema da minha palestra era “Porções, mortalidade e imortalidade: modos de entender a fragilidade humana”. Eu já era um feiticeiro experiente, um bruxo conhecido pelo universo acadêmico e os meus livros eram bem recebidos pela comunidade.
Dei a palestra, terminando-a com uma frase enfática: “a morte faz parte da vida. Nós, bruxos, não evitamos a morte, só que sabemos jogar o jogo dela”. Aplausos imediatos. Robert sorriu, eu sorri de volta, curioso. Desci as escadas, caminhei diretamente atrás dele. Não o encontrava, havia muitos bruxos que me paravam para parabenizar o meu trabalho.
Quando acabou a conferência, fomos ao salão. Robert me convidou para dançar, foi a primeira vez que ouvi a voz dele. O som da voz era curvo e solto, ele não era um homem encanado com o universo. Eu era um acadêmico conhecido, tinha muita naturalidade (e ainda tenho) de intelectualizar as coisas.
- você demorou quanto tempo pra fazer esse trabalho?
- em torno de dois ou três anos
- foi uma palestra bonita. Quer dizer que a fragilidade humana é possível de controlar, meu querido, você acha que vai ser o bruxo que vai inventar o tal eligir da vida eterna?
- não tenho essa pretensão, mas desejo criar trabalhos que ajudam compreender a passagem do tempo. Porções que tornam a vida humana mais consistente
- pra que? A graça da vida humana é a imbecilidade que eles levam, são turvos. Eu, mesmo, adoro enganar humanos
- sério?
- é o meu hobby favorito
- e bruxos? Você engana?
- não, bruxos são de outra espécie, nunca enganei nenhum bruxo, nunca me envolvi com bruxo nenhum
Foi a nossa primeira aproximação. Depois de alguns meses, estávamos complemente apaixonados, o sentimento era recíproco. Robert era fascinado por magias negras e não era um estudioso com método, os assuntos viam para ele como as paixões. Eram intensas, chocavam os outros e, depois, desapareciam. Ele tinha alguma espécie de fixação pela efemeridade das coisas.
- eu fiz esse dragão, porque é a única coisa consistente que eu tenho no meu corpo, colado a mim. Mas ele sai
- esse dragão é uma magia?
- é sim! A magia se chama “sintemporia”
- e o que ela faz?
- você! (ele riu) Bom, ela produz efeitos de calor, atinge os cinco sentidos do corpo humano
- isso atingiu a mim?
- não sei (ele riu e beijou na minha boca). Macco, eu acho que nós somos criaturas diferentes de todos, vivemos num mundo entre leis da natureza e criações da magia. Eu afeto, talvez, a sua parte humana
- você acha que os bruxos têm uma parte humana?
- Macco, nenhum bruxo conseguiu inventar uma porção que libertasse a gente da morte. O nosso tempo é biológico, você vai morrer e eu também. Não adianta fugir.
- os bruxos tentaram, existem vários estudos que apontam o eligir da longa
- o eligir da longa vida (Robert me interrompeu). Macco, os bruxos que quase se aproximaram desse eligir são lendários, mas onde estão eles? Não sabemos nem se eles morreram, todos desapareceram ou enlouqueceram
Esse foi o último momento banal que tive ao lado desse bruxo. Robert foi viajar para as Índias. Eu fiquei obcecado com a ideia de morte e queria provar que ele estava errado. Os bruxos podiam arranjar uma maneira de fugir da morte. As minhas primeiras experiências com ácido fênico, morango e suspiro de jasmim não foram boas, tinham queimado os poros das minhas extremidades das mãos. Depois, passei longas tardes conversando com Mylagros Neide, ela foi a minha professora de alquimia na Universidade, tinha virado a minha grande amiga.
- eu quero inventar o eligir da fonte eterna
- qual a necessidade disso?
- eu quero éeeee eu quero éeeee
- você quer?
- eu quero provar que uma pessoa está errada sobre a condição dos bruxos no mundo
- você tá fazendo essa experiência de birra então?
- Mylagros, os homens são criaturas que lutaram contra as leis da natureza e, por isso, são constrangidos por ela. A gente não. A gente entende as leis da natureza e criamos os nossos feitiços em cima dela; mas, então, por que a gente ainda se parece tanto com os humanos? Por causa da morte. Ainda morremos, ainda perdemos grandes bruxos. Eu vou inventar a vida eterna.
Mylagros arregalou os olhos.
- você não acredita nisso?
-  Macco, eu acho que tu tá mexendo em fogo quente. Bruxos incríveis perderam mais do que suas vidas nessa ideia de querer enfrentar coisas que não entendemos
- mas entendemos a natureza
- entendemos e por isso não enfrentamos, apenas articulamos as nossas experiências com ela. O tempo não, querido, o tempo é uma abstração, não é sólido, não tem padrão, é jogo perigoso jogar com ele
Eu não ouvi Mylagros, continuei com as minhas experiências com ácido fênico e talos de begônias. Passaram três anos. Robert bateu na minha porta, estava ainda mais bonito do que nunca. Bebi dois goles d’ água, ele passava as mãos no meu cabelo.
- você está bem?
- estou sim
Bebi um copo, dois copos e três copos d’ água.
- eu vou até o seu quarto
- não! (respondi com firmeza, bebi apressadamente uma garrafa inteira d’ água) Fica aqui, você quer um copo d’água?
Eu servi um copo d’água. Robert olhou anímico, não entendeu a minha tremedeira nas mãos enquanto servia água em seu copo.
- você está derramando a água?
O meu gato lambeu o chão. Eu fixei meu olhar no animal, fiquei seis segundos suspenso no ar e, depois, fui lamber o chão também.
- o que está fazendo?
- eu estou com sede
- mas o que significa isso? Por que você está assim tão inquieto?
- fica em silêncio! Eu preciso de muita água e preciso de silêncio. Daqui a pouco, eu vou te provar que você estava errado
- por que silêncio? Macco, me conta o que você está fazendo? Você não está brincando com o tempo?
Eu juntei o ácido fênico no chão, matei o meu gato, cortei os meus pulsos e mudei as horas do ponteiro. Robert falava duas ou três palavras que eu não queria ouvir, estava fascinado com essa experiência, absolutamente certo que ia dar o resultado que eu esperava.
- só falta o último ingrediente pro eligir funcionar
- o quê?
Eu calei a boca de Robert com um beijo. Passaram alguns minutos. Eu tinha desaparecido, não era mais um homem sólido, minguava nos braços do meu amante. Robert, entristecido, aplicava a magia “simporia”. O dragão que era colado nas costas, afetava qualquer ser vivo presente no ambiente, entrando nos poros e provocando uma sensação parecida com a paixão. Eu ficava líquido, sumindo diante dele. Robert emudeceu.
Quando eu me transformei em água, Robert me disse:
- por que isso? Eu quero você concreto, não te quero líquido
O dragão nas costas dele estava solto no ambiente. Eu, finalmente, tinha entendido o que era aquela tatuagem. Esse animal era o imaginário e a memória de Robert separada dele, provocava paixões nos outros, porque suscitava a sensibilidade nas pessoas que nunca tiveram histórias turvas e humanas. Eu nunca fui humano, nunca tive imaginário e minha sensibilidade nunca existiu, sempre fui bruxo. Robert viveu muitos anos como um humano, o dragão era a sua humanidade separada. Era o seu lado apaixonante. Eu olhei para figura do dragão e quase imaginei uma infância. Vi uma figura de criança que eu sempre desejei ser, sólida, impaciente e brincalhona. Inventei uma memória humana.
Robert olhou-me e disse:
- todos nós temos dragões escondidos, o meu dragão só é solto
- eu não existo mais, meu amor

Ficamos imersos nessa loucura. Robert era um humano sério, entristecido, que mordia os lábios com ternura. Eu era água, espalhando pela sala, rapidamente, eu ia desaparecer. O dragão, então, bebeu os resquícios do meu ser no chão e, para sempre, colou-se no corpo de Robert. Eu nunca mais saí das costas do meu inesquecível bruxo.