Bebi água. Era uma conferência, todas
as espécies de criaturas estranhas e feiticeiros estavam nesse evento. Eu observei uma figura incomum dentre todos
eles, chamavam de Robert, ele possuía uma tatuagem no braço e uma nas costas
enorme de um dragão (que só mais tarde eu iria saber da existência dessa
tatuagem). Eu estava nervoso, mas alguma
coisa, que não sei explicar, me fez ficar fascinado pela imagem daquele bruxo.
Ele andava devagar, falava arrastado,
caminhava um passo de cada vez. As mãos balançam em câmara lenta, tinham ritmo
próprio. Robert não me pareceu um bruxo comum. Chamaram o meu nome, eu ia dar
uma palestra sobre bruxaria moderna, o tema era a relação entre a fragilidade
humana e o ácido fênico. O tema da minha palestra era “Porções, mortalidade e
imortalidade: modos de entender a fragilidade humana”. Eu já era um feiticeiro
experiente, um bruxo conhecido pelo universo acadêmico e os meus livros eram
bem recebidos pela comunidade.
Dei a palestra, terminando-a com uma
frase enfática: “a morte faz parte da vida. Nós, bruxos, não evitamos a morte,
só que sabemos jogar o jogo dela”. Aplausos imediatos. Robert sorriu, eu sorri
de volta, curioso. Desci as escadas, caminhei diretamente atrás dele. Não o
encontrava, havia muitos bruxos que me paravam para parabenizar o meu trabalho.
Quando acabou a conferência, fomos ao
salão. Robert me convidou para dançar, foi a primeira vez que ouvi a voz dele. O
som da voz era curvo e solto, ele não era um homem encanado com o universo. Eu
era um acadêmico conhecido, tinha muita naturalidade (e ainda tenho) de
intelectualizar as coisas.
- você demorou quanto tempo pra fazer
esse trabalho?
- em torno de dois ou três anos
- foi uma palestra bonita. Quer dizer
que a fragilidade humana é possível de controlar, meu querido, você acha que
vai ser o bruxo que vai inventar o tal eligir da vida eterna?
- não tenho essa pretensão, mas
desejo criar trabalhos que ajudam compreender a passagem do tempo. Porções que
tornam a vida humana mais consistente
- pra que? A graça da vida humana é a
imbecilidade que eles levam, são turvos. Eu, mesmo, adoro enganar humanos
- sério?
- é o meu hobby favorito
- e bruxos? Você engana?
- não, bruxos são de outra espécie,
nunca enganei nenhum bruxo, nunca me envolvi com bruxo nenhum
Foi a nossa primeira aproximação.
Depois de alguns meses, estávamos complemente apaixonados, o sentimento era
recíproco. Robert era fascinado por magias negras e não era um estudioso com
método, os assuntos viam para ele como as paixões. Eram intensas, chocavam os
outros e, depois, desapareciam. Ele tinha alguma espécie de fixação pela
efemeridade das coisas.
- eu fiz esse dragão, porque é a
única coisa consistente que eu tenho no meu corpo, colado a mim. Mas ele sai
- esse dragão é uma magia?
- é sim! A magia se chama
“sintemporia”
- e o que ela faz?
- você! (ele riu) Bom, ela produz
efeitos de calor, atinge os cinco sentidos do corpo humano
- isso atingiu a mim?
- não sei (ele riu e beijou na minha
boca). Macco, eu acho que nós somos criaturas diferentes de todos, vivemos num
mundo entre leis da natureza e criações da magia. Eu afeto, talvez, a sua parte
humana
- você acha que os bruxos têm uma
parte humana?
- Macco, nenhum bruxo conseguiu
inventar uma porção que libertasse a gente da morte. O nosso tempo é biológico, você
vai morrer e eu também. Não adianta fugir.
- os bruxos tentaram, existem vários
estudos que apontam o eligir da longa
- o eligir da longa vida (Robert me
interrompeu). Macco, os bruxos que quase se aproximaram desse eligir são
lendários, mas onde estão eles? Não sabemos nem se eles morreram, todos desapareceram
ou enlouqueceram
Esse foi o último momento banal que
tive ao lado desse bruxo. Robert foi viajar para as Índias. Eu fiquei obcecado
com a ideia de morte e queria provar que ele estava errado. Os bruxos podiam
arranjar uma maneira de fugir da morte. As minhas primeiras experiências com
ácido fênico, morango e suspiro de jasmim não foram boas, tinham queimado os
poros das minhas extremidades das mãos. Depois, passei longas tardes
conversando com Mylagros Neide, ela foi a minha professora de alquimia na
Universidade, tinha virado a minha grande amiga.
- eu quero inventar o eligir da fonte
eterna
- qual a necessidade disso?
- eu quero éeeee eu quero éeeee
- você quer?
- eu quero provar que uma pessoa está
errada sobre a condição dos bruxos no mundo
- você tá fazendo essa experiência de
birra então?
- Mylagros, os homens são criaturas
que lutaram contra as leis da natureza e, por isso, são constrangidos por ela.
A gente não. A gente entende as leis da natureza e criamos os nossos feitiços
em cima dela; mas, então, por que a gente ainda se parece tanto com os humanos?
Por causa da morte. Ainda morremos, ainda perdemos grandes bruxos. Eu vou
inventar a vida eterna.
Mylagros arregalou os olhos.
- você não acredita nisso?
-
Macco, eu acho que tu tá mexendo em fogo quente. Bruxos incríveis
perderam mais do que suas vidas nessa ideia de querer enfrentar coisas que não
entendemos
- mas entendemos a natureza
- entendemos e por isso não
enfrentamos, apenas articulamos as nossas experiências com ela. O tempo não,
querido, o tempo é uma abstração, não é sólido, não tem padrão, é jogo perigoso
jogar com ele
Eu não ouvi Mylagros, continuei com
as minhas experiências com ácido fênico e talos de begônias. Passaram três
anos. Robert bateu na minha porta, estava ainda mais bonito do que nunca. Bebi
dois goles d’ água, ele passava as mãos no meu cabelo.
- você está bem?
- estou sim
Bebi um copo, dois copos e três copos
d’ água.
- eu vou até o seu quarto
- não! (respondi com firmeza, bebi
apressadamente uma garrafa inteira d’ água) Fica aqui, você quer um copo d’água?
Eu servi um copo d’água. Robert olhou
anímico, não entendeu a minha tremedeira nas mãos enquanto servia água em seu
copo.
- você está derramando a água?
O meu gato lambeu o chão. Eu fixei
meu olhar no animal, fiquei seis segundos suspenso no ar e, depois, fui lamber
o chão também.
- o que está fazendo?
- eu estou com sede
- mas o que significa isso? Por que
você está assim tão inquieto?
- fica em silêncio! Eu preciso de
muita água e preciso de silêncio. Daqui a pouco, eu vou te provar que você
estava errado
- por que silêncio? Macco, me conta o
que você está fazendo? Você não está brincando com o tempo?
Eu juntei o ácido fênico no chão,
matei o meu gato, cortei os meus pulsos e mudei as horas do ponteiro. Robert
falava duas ou três palavras que eu não queria ouvir, estava fascinado com essa
experiência, absolutamente certo que ia dar o resultado que eu esperava.
- só falta o último ingrediente pro
eligir funcionar
- o quê?
Eu calei a boca de Robert com um
beijo. Passaram alguns minutos. Eu tinha desaparecido, não era mais um homem sólido,
minguava nos braços do meu amante. Robert, entristecido, aplicava a magia “simporia”.
O dragão que era colado nas costas, afetava qualquer ser vivo presente no
ambiente, entrando nos poros e provocando uma sensação parecida com a paixão.
Eu ficava líquido, sumindo diante dele. Robert emudeceu.
Quando eu me transformei em água,
Robert me disse:
- por que isso? Eu quero você concreto,
não te quero líquido
O dragão nas costas dele estava solto
no ambiente. Eu, finalmente, tinha entendido o que era aquela tatuagem. Esse
animal era o imaginário e a memória de Robert separada dele, provocava paixões
nos outros, porque suscitava a sensibilidade nas pessoas que nunca tiveram
histórias turvas e humanas. Eu nunca fui humano, nunca tive imaginário e minha
sensibilidade nunca existiu, sempre fui bruxo. Robert viveu muitos anos como um
humano, o dragão era a sua humanidade separada. Era o seu lado apaixonante. Eu
olhei para figura do dragão e quase imaginei uma infância. Vi uma figura de
criança que eu sempre desejei ser, sólida, impaciente e brincalhona. Inventei
uma memória humana.
Robert olhou-me e disse:
- todos nós temos dragões escondidos,
o meu dragão só é solto
- eu não existo mais, meu amor
Ficamos imersos nessa loucura. Robert
era um humano sério, entristecido, que mordia os lábios com ternura. Eu era
água, espalhando pela sala, rapidamente, eu ia desaparecer. O dragão, então,
bebeu os resquícios do meu ser no chão e, para sempre, colou-se no corpo de
Robert. Eu nunca mais saí das costas do meu inesquecível bruxo.