Tinha
abandonado a sua cidade natal chamada Talera. Estava tomando um copo de água,
soube através de uma carta de um acidente de carro que houve com Marcelo.
Estava fria, um pouco calculista, tentava compreender o acontecimento, esqueceu
completamente de chorar. Ela olhava o chão sem enxergar a cor, pensava as
coisas que tinha vivido.
-
Não quer tomar um banho Manuela? – perguntou a sua mãe
-
não
-
não quer comer um bolo de chocolate?
-
não
Depois
de um profundo silêncio.
-
Filha, o que você quer?
-
mãe, vai fazer o bolo de chocolate – pensando em como usaria as palavras para
não transparecer a profundidade de suas emoções, disse com uma banalidade –
quero comer bolo, mas antes vou tomar banho.
Saiu
da sala com a cabeça cabisbaixa, a Mãe sentiu um tormento no ar, mas
aprontou-se rapidamente em criar um bolo e sentiu uma tristeza que não soube
exprimir enquanto preparava o doce. Desejou, de certa maneira, sentir o
sentimento no lugar da sua filha, mas soube, imediatamente, que ela jamais
comunicaria o sentimento por completo, só fragmentos deste, apenas um diálogo
bruto comunicaria o amor que sempre teve por Marcelo e nunca assumiria diante
de ninguém. O silêncio era o sinal mais bruto de sua tristeza que a sua filha não
queria viver.
No
banho, Manuela decidiu orar e isso pareceu algo tão estranho à concepção de
mundo dela que quase desistiu. Criou tantas espécies de pensamentos sobre Deus
que acabou por decidir que nunca mais falaria essa palavra para não enlouquecer
com dogmas e com ideias de futuros eternos. Uma solidão efêmera já lhe parecia
muito grave, uma eterna solidão, então, lhe pareceu profundo demais. O Deus dos
Católicos sempre lhe deu muitos temores, nunca foi muito sedutor rezar para
ele.
Entretanto,
ela tinha uma estranha vontade de rezar; talvez, para ouvir a sua voz, talvez,
para dialogar consigo mesma ou, talvez, para não se esquecer do rosto e das
brincadeiras que teve com Marcelo. Ele era um menino muito tímido, morava ao
lado de sua casa, não era um rapazinho bonito, mas dava uma sensação estranha, nunca
entendeu o motivo que fez ficar atraída por ele, mas ficou e não teve controle,
viveu isso com tanta intensidade e entrega que até imaginaria viver sem ele, no
entanto, não gostaria de vê-lo com outras pessoas. Manuela cresceu com Marcelo
como uma reminiscência da vida adulta que era trazida por um fragmento
estranho, os próprios homens que se envolvia relembravam a relação que tinha
com Marcelo na infância; e, principalmente, comer amoras era um truque do
passado que surgia de repente no presente e lhe trazia saudades. Ao menos,
sentia que era algo que jamais viveria novamente e era uma experiência irrepetível,
nunca lhe passou na cabeça a possibilidade da morte corporal do seu antigo
amigo de infância. Imaginar a morte dele antes de completar vinte e quatro anos,
por conta de um acidente de carro, era algo que, para ela, era inimaginável. Marcelo
não existia mais.
-
Pai nosso – reza baixinho, mas raciocinava se eram essas, de fato, as palavras
que gostaria de ouvir, - pai nosso? Por quê? Morrer pessoas assim que, de certa
maneira, sei lá, foram importantes, não devia ser lícito. O que estou falando?
O que estou falando? Devia estar rezando o pai nosso. Mas, não gostava dele,
amava ele, queria ele para mim, do mesmo jeito que não suportava a ideia de ver
ele novamente, de encarar ele, de dizer as coisas que eu pensava, de saber que
a gente não era mais crianças. Mas, mas, ele não está aqui. Ele não está aqui,
estou eu e essa parede. Estou nua, pensando novamente em um cara que,
provavelmente, não sentiu um terço do que eu senti por ele, mas também não sei
até que ponto eu senti essas coisas. Devia rezar o pai nosso, devia rezar o pai
nosso.
Ao
trocar de roupa, Manuela procurou uma fotografia do rosto de Marcelo,
lembrou-se que não tinha fotografias dele em casa, todas as fotos estavam na
casa de sua mãe. Ouviu o grito de sua mãe chamando para comer bolo de chocolate,
parecia uma cena quando era menininha, quando a sua mãe chamava por ela para
comer e descia correndo as escadas para contemplar os chamados que ouvia da Dona
Rosa. Um silêncio trepidante climatizou o ambiente, elas ficaram horas sem
pronunciar uma palavra sequer. Manuela ficou com vontade de perguntar se a
outra mulher tinha uma fotografia do Marcelo, mas perdeu a coragem de perguntar
quando percebeu, de repente, que olhar as fotografias era, talvez, o pior tipo de morte.
-filha,
- dizendo muito sem graça, - posso fazer uma oração para você?
-
pode mãe – meio sem graça, quase dizendo não, aceitou ouvir. A mãe pegou a sua
mão direita e pediu que ela fechasse os olhos, ela aceitou e obedeceu.
-
Filha, espero que um dia você acredite em Deus, te desejo que você escute a
música das constelações, espero que um dia você tenha uma imaginação menos
confusa, que um dia aprenda a orar e que sonhe sem perder a noção de realidade.
Eu te desejo que namore com anjos e com demônios e que vive tudo aquilo que não
vivi e um dia invejei em vida, eu te desejo o amor em todas as formas para que
você não perca a vontade de continuar acreditando na vida, te desejo uma
felicidade que poucos vão invejar, te desejo olhos de tigres e inteligência de
raposa para tomar atitudes, te desejo orelhas com sonhos, pés com fome, te
desejo curiosidade em tudo que um dia vai viver e desejos. Te desejo uma luz
muito grande que você sequer vai sentir e Deus vai te dar.
Manuela
não respondeu, a imaginação da sua mãe era suficientemente generosa para as
duas e, por um momento, esqueceu que era forte e caiu em um mar de lágrimas.
Ela ficou abraçada por tanto tempo com a sua mãe e decidiu não brigar, pelo
menos hoje, para provar que a imaginação cristã da mamãe era perigosa, pois
poderia facilmente cair em discursos políticos intolerantes. Manuela se
esqueceu dos discursos políticos e vivenciou, pela primeira vez, uma espécie de
fé criada através da imaginação de sua mãe. Agradeceu apenas, esquecendo-se
completamente do rosto de Marcelo e tendo consciência que as suas mãos eram
firmes e finas.
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