quinta-feira, 27 de junho de 2013

O Bolo de Chocolate

Tinha abandonado a sua cidade natal chamada Talera. Estava tomando um copo de água, soube através de uma carta de um acidente de carro que houve com Marcelo. Estava fria, um pouco calculista, tentava compreender o acontecimento, esqueceu completamente de chorar. Ela olhava o chão sem enxergar a cor, pensava as coisas que tinha vivido.
- Não quer tomar um banho Manuela? – perguntou a sua mãe
- não
- não quer comer um bolo de chocolate?
- não
Depois de um profundo silêncio.
- Filha, o que você quer?
- mãe, vai fazer o bolo de chocolate – pensando em como usaria as palavras para não transparecer a profundidade de suas emoções, disse com uma banalidade – quero comer bolo, mas antes vou tomar banho.
Saiu da sala com a cabeça cabisbaixa, a Mãe sentiu um tormento no ar, mas aprontou-se rapidamente em criar um bolo e sentiu uma tristeza que não soube exprimir enquanto preparava o doce. Desejou, de certa maneira, sentir o sentimento no lugar da sua filha, mas soube, imediatamente, que ela jamais comunicaria o sentimento por completo, só fragmentos deste, apenas um diálogo bruto comunicaria o amor que sempre teve por Marcelo e nunca assumiria diante de ninguém. O silêncio era o sinal mais bruto de sua tristeza que a sua filha não queria viver.

No banho, Manuela decidiu orar e isso pareceu algo tão estranho à concepção de mundo dela que quase desistiu. Criou tantas espécies de pensamentos sobre Deus que acabou por decidir que nunca mais falaria essa palavra para não enlouquecer com dogmas e com ideias de futuros eternos. Uma solidão efêmera já lhe parecia muito grave, uma eterna solidão, então, lhe pareceu profundo demais. O Deus dos Católicos sempre lhe deu muitos temores, nunca foi muito sedutor rezar para ele.
Entretanto, ela tinha uma estranha vontade de rezar; talvez, para ouvir a sua voz, talvez, para dialogar consigo mesma ou, talvez, para não se esquecer do rosto e das brincadeiras que teve com Marcelo. Ele era um menino muito tímido, morava ao lado de sua casa, não era um rapazinho bonito, mas dava uma sensação estranha, nunca entendeu o motivo que fez ficar atraída por ele, mas ficou e não teve controle, viveu isso com tanta intensidade e entrega que até imaginaria viver sem ele, no entanto, não gostaria de vê-lo com outras pessoas. Manuela cresceu com Marcelo como uma reminiscência da vida adulta que era trazida por um fragmento estranho, os próprios homens que se envolvia relembravam a relação que tinha com Marcelo na infância; e, principalmente, comer amoras era um truque do passado que surgia de repente no presente e lhe trazia saudades. Ao menos, sentia que era algo que jamais viveria novamente e era uma experiência irrepetível, nunca lhe passou na cabeça a possibilidade da morte corporal do seu antigo amigo de infância. Imaginar a morte dele antes de completar vinte e quatro anos, por conta de um acidente de carro, era algo que, para ela, era inimaginável. Marcelo não existia mais.
- Pai nosso – reza baixinho, mas raciocinava se eram essas, de fato, as palavras que gostaria de ouvir, - pai nosso? Por quê? Morrer pessoas assim que, de certa maneira, sei lá, foram importantes, não devia ser lícito. O que estou falando? O que estou falando? Devia estar rezando o pai nosso. Mas, não gostava dele, amava ele, queria ele para mim, do mesmo jeito que não suportava a ideia de ver ele novamente, de encarar ele, de dizer as coisas que eu pensava, de saber que a gente não era mais crianças. Mas, mas, ele não está aqui. Ele não está aqui, estou eu e essa parede. Estou nua, pensando novamente em um cara que, provavelmente, não sentiu um terço do que eu senti por ele, mas também não sei até que ponto eu senti essas coisas. Devia rezar o pai nosso, devia rezar o pai nosso.
Ao trocar de roupa, Manuela procurou uma fotografia do rosto de Marcelo, lembrou-se que não tinha fotografias dele em casa, todas as fotos estavam na casa de sua mãe. Ouviu o grito de sua mãe chamando para comer bolo de chocolate, parecia uma cena quando era menininha, quando a sua mãe chamava por ela para comer e descia correndo as escadas para contemplar os chamados que ouvia da Dona Rosa. Um silêncio trepidante climatizou o ambiente, elas ficaram horas sem pronunciar uma palavra sequer. Manuela ficou com vontade de perguntar se a outra mulher tinha uma fotografia do Marcelo, mas perdeu a coragem de perguntar quando percebeu, de repente, que olhar as fotografias era, talvez, o pior tipo de morte.
-filha, - dizendo muito sem graça, - posso fazer uma oração para você?
- pode mãe – meio sem graça, quase dizendo não, aceitou ouvir. A mãe pegou a sua mão direita e pediu que ela fechasse os olhos, ela aceitou e obedeceu.
- Filha, espero que um dia você acredite em Deus, te desejo que você escute a música das constelações, espero que um dia você tenha uma imaginação menos confusa, que um dia aprenda a orar e que sonhe sem perder a noção de realidade. Eu te desejo que namore com anjos e com demônios e que vive tudo aquilo que não vivi e um dia invejei em vida, eu te desejo o amor em todas as formas para que você não perca a vontade de continuar acreditando na vida, te desejo uma felicidade que poucos vão invejar, te desejo olhos de tigres e inteligência de raposa para tomar atitudes, te desejo orelhas com sonhos, pés com fome, te desejo curiosidade em tudo que um dia vai viver e desejos. Te desejo uma luz muito grande que você sequer vai sentir e Deus vai te dar.

Manuela não respondeu, a imaginação da sua mãe era suficientemente generosa para as duas e, por um momento, esqueceu que era forte e caiu em um mar de lágrimas. Ela ficou abraçada por tanto tempo com a sua mãe e decidiu não brigar, pelo menos hoje, para provar que a imaginação cristã da mamãe era perigosa, pois poderia facilmente cair em discursos políticos intolerantes. Manuela se esqueceu dos discursos políticos e vivenciou, pela primeira vez, uma espécie de fé criada através da imaginação de sua mãe. Agradeceu apenas, esquecendo-se completamente do rosto de Marcelo e tendo consciência que as suas mãos eram firmes e finas. 

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